Dez anos depois, a mesma ladainha. Como se não bastasse o cansativo, repetitivo aranzel dos "balanços" de final de ano – em que se compulsam as personalidades do ano, as frases mais bombásticas, os fracassos, os melhores discos, filmes e livros, etc. –, este ano temos dose dupla de tudo isto porque há muita gente que teima que o último dia de 2009 anuncia o final de uma década. Há dez anos passámos por tudo isto. Com uma agravante: em 1999 havia muita gente convencida que o século XX terminava no trigésimo primeiro dia de Dezembro desse ano.
Das duas, uma: ou toda essa gente tem um problema terrível com os números (e particularmente com a ordenação cardinal), ou têm uma pressa impressionante de andar atrás do tempo. Vou acreditar que se trata da primeira hipótese. São atraiçoados pela mudança de número no terceiro dígito que compõe o ano que começa amanhã. Esse dígito deixa de ser o zero e passa a ser o número um, o que as leva a darem por adquirido que daqui a uma horas já entrámos numa nova década.
Ora, uma década é composta por dez anos. E, a menos que se arranje uma versão adaptada daquela ridícula estrofe de um ícone do cancioneiro ligeiro indígena que sugere que "o natal é todos os dias, é quando um homem quiser", também se podia dizer que uma década termina quando a um homem apraz. Se me apetecer dizer que a década só termina no fim de 2012, é porque considero que ela começou no primeiro dia de 2003. Para as convenções, todavia, as décadas começam num número redondo. Talvez por isso os tais teimosos estejam convencidos que na dobra do ano que muda o terceiro dígito da combinação numérica que compõe o ano se faça a mudança das águas entre duas décadas. Assim como assim – imagino que seja este o seu raciocínio –, o zero é o tal número redondo e até é um número par.
Tudo isso faria sentido se o calendário fosse um aglomerado de datas ao sabor dos caprichos humanos. Não parece que seja esse o caso. O calendário é uma sequência ordenada e obedece a uma coerência. A contagem do tempo teve algures um começo. Se formos pelas normas estabelecidas, foi com o nascimento de Cristo que se iniciou a contagem dos anos. O primeiro ano do calendário foi aquele em que J.C. nasceu. O primeiro ano, logo, o ano um desta contagem. A sequência de dez anos que consuma a década só terminou ao décimo ano, logo, ao ano dez desta contagem.
Por maioria de razão, e decalcando o raciocínio para a década em que estamos, 2009 é o nono ano da década. Então como se teima que hoje termina a década se amanhã se inicia o décimo ano da sequência? Para que os teimosos estivessem certos na sua extemporânea sucessão de décadas, teriam que nos convencer que a presente década tinha começado em 2000. Recuando no tempo, aos alvores da contagem d.C., era como se o ano inicial do calendário tivesse sido o ano zero...
Se não for por atrapalhação algébrica, esta teimosia em apressar o final da década só se explica pela pressa em andar atrás do tempo – ou, também se podia alvitrar, pela pressa em empurrar o tempo com a barriga. Um sinal dos tempos: a paradoxal prisão interna que nos inquieta, divididos entre a tremenda pressa de viver a vida, como se fôssemos nós a atropelar os relógios que marcam o compasso do tempo, e as lamúrias de que o tempo se escoa com uma lentidão exasperante. Tenho a impressão que o extemporâneo funeral da primeira década do século XXI aprova a sensação que domina os teimosos – a de que temos que apressar o tempo que eles sentem passar muito devagar. O que me deixa perplexo, pois padeço de maleita oposta: a cada ano que se dobra, naqueles inevitáveis momentos de interiorização do ano que termina, sinto a apoplexia do tempo que vai numa corrente acelerada.
5 comentários:
Na verdade termina sim. Começa a contar do zero.
00 = um ano
01 = dois anos
02 = três anos
03 = quatro anos
04 = cinco anos
05 = seis anos
06 = sete anos
07 = oito anos
08 = nove anos
09 = 10 anos.
conta nos dedos, não tem erro.
A senhora Rebeca não leu o texto. Ou não o soube interpretar. Ou as ideias feitas prejudicam o discernimento.
PVM
O teu raciocínio tem lógica. Porém, se pensares que existem anos antes de Cristo, que podem legitimamente ser designados por -1, -44, - 3000, etc, terás uma sequência de -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4, o que valida a presença do 0 )zero). Vendo as coisas desta forma, o ano 2000 seria o dealbar do III milénio (d.C é claro).
Sra. Rebeca, ao contar seus dedos você começa do 0? Dedo 0, dedo 1?
Eu particularmente começo do 1.
Sr. Rui Ribeiro, existe o ano 00? Década 00? Século 00? Milênio 00?
Como é o 0 em romano?
Leiam e apreciem: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12195
Parabéns PVM pela postagem.
Sr. Anónimo,
Se existem anos designados com números negativos e anos com números positivos e se fazem uma sequência tem de haver um zero na transição. Foi isso que eu disse. Em relação às décadas, por sinal fala-se da década de 20 ou de 60 e não na década de 21 ou de 61.
Os Romanos não conheciam o zero.
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