31.8.10

As alucinações do camarada Fidel


In http://www.duplipensar.net/images/politica/fidel-osama.jpg
(A semanal irritação aos comunas do burgo)
Há fenómenos que se repetem com a distância das décadas, à distância da geografia, com personagens que aparentemente estão nos antípodas. Nos idos de sessenta, um ditador caiu da cadeira e continuava convencido que mantinha as capacidades mentais para ser o presidente do conselho de ministros. Mais de quarenta anos depois, outro ditador, de outra estirpe, deve estar convencido que continua a mandar lá na terra dele depois de ter vencido uma terrível doença.
O camarada Fidel continua a lutar contra os moinhos de vento de sempre. É o medonho capitalismo que oprime os desfavorecidos, essa imensa e silenciosa maioria que devia fazer um levantamento e instituir o profiláctico comunismo em todo os lados. São os Estados Unidos, inimigo de estimação, fonte de todos os males que acontecem ao mundo. E são os dissidentes, esses traidores que, para além da ignorância (como podem desdenhar das maravilhas do comunismo, esse paraíso de liberdades e de bem-estar individual), conspiram desde Miami para que Cuba se liberte da mantilha libertadora do comunismo e regresse à escuridão do passado.
Depois da doença, o camarada Fidel recupera. Já não apresenta o ar macilento. Consta que está na posse das suas faculdades mentais, pois a propaganda do regime trata de maquilhar a existência de um herói a quem pouco falta para ser imortal. Entre conselhos ao irmão que lhe sucedeu à frente do partido e, por inerência, do país – o que parece trazer a sucessão dinástica das monarquias para o comunismo – o camarada Fidel tem tempo e energia para receber o tiranete da Venezuela numa reunião de cinco horas, cinco. E para descobrir a pólvora: anunciou que o terrorista mais procurado do mundo, o barbudo (como ele) Bin Laden, é um agente da CIA.
As reminiscências do passado transitam na sublime comparação dos episódios. Um ditador caiu da cadeira e nunca mais foi o mesmo, apesar de estar convencido, no seu íntimo adoentado, que continuava a ser o chefe da banda. O ditador de Cuba deixou de estar acamado na terrível doença – que nem a terrível doença consegue consumir aquela carcaça – mas dela saldou-se com uma senilidade atroz. A menos que todas as teorias da conspiração que atribuem os piores desígnios às autoridades dos Estados Unidos tenham correspondência com a realidade.
Já por mais do que uma vez aqui deixei palavras de antipatia pelo papel que os Estados Unidos desempenham no mundo. O que não me coloca à mesa com os apóstolos das conspirações que atribuem a fonte de todos os males àquele país (como uma sugestiva inscrição numa parede perto de minha casa sobre a autoria dos atentados de 11 de Setembro de 2001: www.demolicoescontroladas.org.) Aos senis devemos dar o devido desconto. Assim como assim, o ditador Fidel habituou-se, desde que vestiu a fardamenta de ditador, a dizer o que bem lhe apetece porque nunca foi confrontado com o contraditório. Habituou-se a que a sua palavra tivesse a força de lei. Ele dizia e estava dito, sem necessidade de provar os disparates que ia oferecendo. Ora, ou apresenta provas irrefutáveis de que Bin Laden anda a soldo da CIA – o que seria um terramoto devastador nos alicerces das relações internacionais – ou o melhor é dedicar-se à pesca ou a outra qualquer actividade lúdica que faça passar devagar os derradeiros anos de vida que o esperam.
Se calhar é do calor tropical que banha a ilha. A ver pelo que se passa aqui, com 37º de máxima para hoje, e o mal que isso me faz ao discernimento das ideias. Com duas diferenças: por cá, esse calor é excepção; e não me perdoam se vier para aqui com afirmações bombásticas sem prova que as sustente.

30.8.10

Digno de revista cor-de-rosa


In http://images01.olx.pt/ui/2/51/38/19324338_2.jpg
Mas passou-se num qualquer jornal de referência (não me lembro qual): sua excelência, o presidente da república, usa, nas obrigatoriamente internas férias, uns calções de praia de uma “chiquérrima” marca francesa (já não me lembro qual) que custam entre cento e dez e cento e sessenta euros ao exemplar. É nisso acompanhado por um punhado de “notáveis”, que também se passeiam nas praias algarvias com aqueles calções da moda. O professor Marcelo, o inevitável Deus Pinheiro (um must do jet set doméstico), o inefável Pinho que deixou de ser ministro atraiçoado por uns espontâneos chifres parlamentares (o novo rival de Deus Pinheiro no jet set caseiro, na variante políticos com queda para as revistas cor-de-rosa).
Ao ler isto, senti que cresci um bocado no fim-de-semana. Por um lado, se isto de tapar as partes pudibundas com uns calções de cento e sessenta euros fosse revelador dos pergaminhos, estava reduzido à ausente linhagem – os calções que foram ontem à praia custaram vinte euros. Por outro lado, é imperativo que saibamos, através da imprensa sempre disposta a noticiar o indispensável, que um punhado de “notáveis” (como adoro o qualificativo!) faz gala em usar aqueles calções de banho da muito chique marca francesa. Se fosse dado a conspirativas teorias, diria que a notícia tinha sido encomendada pelo representante da muito chique marca francesa. Aliás, o representante foi entrevistado, desfilando as virtudes que justificam o preço nada módico da frugal peça de vestuário. Ganhei uma noite de sono tranquilo ao saber que o Pinho vai à loja e sai de lá com um carregamento de calções de banho da moda para distribuir pelos varões da família (ele incluído).
Como todos aqueles aspectos são – como dizê-lo? – determinantes para o andamento da pátria, os jornalistas deviam ir mais a fundo na capacidade investigativa. Se é assim tão importante saber a marca do farrapo que tapa as partes nobres daquela gente “notável”, podiam entrevistar à socapa as mulheres-a-dias de todos aqueles “notáveis”, contra ao pagamento de um soldo generoso, para ficarmos a saber a marca e a cor das cuecas que eles envergam quando não põem o calção de banho na época estival. (Só dispensávamos saber com que frequência são mudadas, para não termos, eventualmente, uma decepção.)
Haveremos todos de aprender que os destinos da nação dependem da qualidade da fazenda que ampara as partes baixas dos “notáveis” que têm uma palavra a dizer. Só que os jornalistas de costumes que enxameiam até jornais de referência não deviam ser parciais na triagem. É que o timoneiro da pátria – que a diligente propaganda oficial fabricou como um dos mais bem vestidos do mundo... – passou incólume numa exibição burgessa que é seu apanágio quando se esfarela a casquinha do artificial verniz que esconde o labrego que há em si. Foi quando apareceram umas fotografias da personagem refastelada numa espreguiçadeira de um luxuoso resort algarvio envergando uma t-shirt da feira dos ciganos, uns calções vermelhos de duvidosa estética e uma peúgas brancas em cima das sapatilhas de atletismo. Que me tenha sido dado a ler (e leio muitos jornais), nenhum plumitivo dos costumes chamou parolo à personagem.
Só mais isto: ninguém se lembrou, mas temos aqui matéria sensível para um protesto das feministas (que devem estar de férias e distraídas das notícias que importam). Elas não se atiraram furiosamente ao enviesamento de género que vinha na notícia. Pois que há por aí tantas “notáveis” e não sabemos a marca de biquíni que elas popularizam nas praias.
Se calhar, está tudo de férias. Até os factos que importam para as notícias que o devem ser. Vai daí, estas minudências risíveis saltam para letra de forma nos jornais.

27.8.10

Evocar a glória ausente de outrora, ou apenas um caso perdido?


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Nos últimos dias tenho lido algumas análises sobre o “estado na nação” carregadas de cepticismo. Quase todas tresandam a um saudosismo evocativo dos tempos áureos em que éramos motivo de orgulho para o mundo, ainda que o mundo fosse uma janela muito exígua comparada com o enorme portal que é hoje. Em contrapartida – choramingam os saudosistas – hoje somos uma irrelevância. Alguns resgatam as memórias que fazem parte do imaginário colectivo, aquelas que vêm narradas nos livros de história em forma de teatralidade heróica. É quando o conservadorismo se abraça a um nacionalismo (para mim) saloio.
Não são apenas alguns intelectuais e gente da opinião publicada que deslizam para o nacionalismo saudosista. Nas artes, particularmente na chamada “música moderna”, há um pequeno reduto que rema contra a maré (pois os “ícones” do género são convenientemente de esquerda). Há por aí uns rapazes, os Golpes, que foram ao baú das recordações desenterrar a parafernália cénica dos Heróis do Mar. Trinta anos depois, regressa a cruz de Cristo, o olhar altivo que se perde no firmamento onde se prometem as grandiosas luzes da pátria agora amesquinhada, as estrofes que cantam a grandeza de outrora, em chorosas ladainhas que enfatizam, nas entrelinhas das estrofes, como estamos fadados a uma pequenez esquizofrénica.
Será natural que o tempo determine mudanças no pensamento. Na década de oitenta admirei os Heróis do Mar, como admirava um poeta marginal como António Manuel Couto Viana. Em parte, na altura era-me simpático o referencial nacionalista. Em parte, também, porque na década de oitenta, antes de entrarmos para a Europa que marcou o reencontro com a civilização, talvez fizesse sentido a saudade das épocas grandiosas em que andávamos dois passos à frente dos outros. Hoje, que estamos na Europa de corpo inteiro; e hoje, que a Europa se enraizou de tal forma por dentro de nós que seria catastrófico pensarmo-nos no exterior dela, a evocação desse saudosismo nacionalista é um anacronismo.
Regresso ao início do texto, às muito cépticas leituras do “estado da nação” de gente que milita na direita conservadora. As lamentações pela desdita da pátria passam-me ao lado. Elas marinam num imobilismo temporal que marca o compasso errado no contexto dos ventos dominantes – mesmo que não gostemos do odor que nos trazem esses ventos, pois mãos algumas conseguem-nos desviar do seu curso. É isso que mais incomoda neste nacionalismo embebido na saudade. Precisamente: essa grandeza foi-o lá atrás, naquele tempo emoldurado nos livros de história, no tempo irrepetível. Já devíamos ter aprendido (em rigor, deviam eles, os nacionalistas empoeirados) a conviver com a pequenez em que nos tornámos sem a transformar num drama. O mergulho no passado, com a poeira que vem atrás, é a sarjeta onde fermenta a depressão colectiva que leva a lugar algum.
Não estou a sugerir que o pessimismo empedernido dos nacionalistas da saudade seja a antítese do retrato actual. Mal por mal, já chegam os abundantes fragmentos de cepticismo quando olhamos para o quadro pintado a cores tão sombrias. Evocar os feitos dos heróis intemporais (descobridores e missionários que converteram os bárbaros ao catolicismo), só serve para coalhar a patologia da mediocridade existente. A deambulação sebastianista apascenta o mais doentio dos cepticismos. É quando vem à memória a parte derradeira do “Manifesto Anti-Dantas” de Almada Negreiros:
“(...) Portugal, que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mas atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia – se é que a sua cegueira não é incurável, e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
E digo: é que já nem sequer ser assim asseado terá préstimo algum.

26.8.10

Tricky, "Contradictive"

O ministro nabo anda a brincar aos espiões?


http://www.loja.jardicentro.pt/images/horticolas/jardicentro_sementes_nabo_globo_roxo_nickerson_zwaan.jpg
Santos Silva, ministro da defesa nos intervalos em que trata da propaganda do governo, deu uma entrevista em que anunciou, com pompa e circunstância, que íamos meter uns espiões no Líbano. Caiu o Carmo e a Trindade. O homem foi acusado de não ter perfil para o cargo. Anda por aí muita gente ofendida, sugerindo ao intelectual da propaganda que só falta revelar as identidades dos agentes secretos que vão espiar para o Líbano.
A primeira confusão que este tempestade num copo de água me causa é a seguinte: mas que raio vão os agentes secretos espiar para o Líbano? De vez em quando, ainda somos assaltados por estas irrisórias manifestações de grandeza que serão as sobras que vêm do tempo em que ainda éramos uma potência acidental. O mestre da propaganda que aterrou de pára-quedas no ministério da defesa podia ao menos elucidar as gentes sobre a serventia da missão de espionagem no Líbano. Como estamos habituados a que a malta de espionagem exerça a função em sítios sensíveis para a defesa da integridade do território e dos interesses nacionais, fico sem perceber por que se escolheu o Líbano. E porque não as Ilhas Faroé?
Depois há a injustiça nos ataques ferozes que foram lançados à augusta personagem que manda nas tropas (depois do presidente da república). Houve até alguns que exigiram a demissão do ministro, por manifesta inépcia para o cargo. Que seria imperdoável dizer o que disse numa entrevista a um jornal, pois a espionagem não se compadece com a franqueza e a transparência que o ministro trouxe para a imprensa.
Tudo no seu contrário. Santos Silva é um visionário (como ficou comprovado quando deu à estampa, há um par de meses, um ensaio em que oferece ao escrutínio público não-sei-quantas-teses de esquerda moderna). Anda três passos à frente do tempo e de todos nós. Limitou-se, por palavras que se lêem nas entrelinhas, a confirmar a irrelevância internacional que somos. Assim como assim, mais tarde ou mais cedo os outros serviços secretos (os que são eficazes) vão descobrir a identidade dos bravos espiões pátrios. O ministro da defesa poupou-lhes esforço. Deu o seu contributo para que os eficazes serviços secretos (os dos outros) se concentrem em espiar quem periga a segurança do mundo.
Eu, que já por aqui escrevi um par de vezes sobre a incoerência dos serviços secretos no contexto do moderno Estado de direito, sinto regozijo com a entrevista do ministro da defesa. É uma pedrada no charco. Enfim, um pouco de transparência no indevidamente universo fechado dos serviços secretos. Estou-me nas tintas para os muito sérios que nobilitam a função, argumentando que os serviços secretos são, por definição, secretos – logo, imunes ao escrutínio que submete a actividade pública ao império do direito. Quando se abrem precedentes é meio caminho andado para que mais e mais actividades públicas reclamem a excepção, querendo fugir ao chicote da lei. Nessa altura, começam a sobrar apenas uns cacos do tal Estado de direito. Que não passará de retórica.
Ao contrário do coro de críticos que exige a demissão do augusto ministro da defesa, até acho que ele provoca menos dano a sê-lo do que na função que o popularizou (não pelas melhores razões) e que ainda agora chama a si – a de ideólogo da propaganda do governo. Se me é permitida a ousadia, deixava aqui um par de sugestões para a augusta personagem continuar a ser um visionário ministro da defesa: primeiro, levar a transparência até ao fim e identificar, com nomes e fotografias, a lista dos agentes secretos; segundo, dar os primeiros passos para deixarmos de ter forças armadas.

25.8.10

O tempo é uma invenção (how long is now?)


In http://aterceiranoite.org/wp-content/uploads/2010/04/tempo.jpg
Uma terrível tirania pautada por todas as clepsidras que enclausuram a medida do tempo. Tudo tem um prazo. Tudo é medido na escala do tempo. Andamos a compasso dos ponteiros que marcam a cadência dos calendários. Umas vezes parece intemporal, quando queremos que o tempo se apresse, a impaciência a reluzir com a aparente, exasperante lentidão dos ponteiros. Outras vezes, é como se fosse um relâmpago que tão depressa detona como se extingue na morosidade de um instante que se consome.
O tempo que nos aprisiona é uma invenção que recorda a essência temporária de quem fita a imortalidade pelo binóculo da impossibilidade. É uma sucessão de instantes que se consomem na sua efemeridade. Uns atrás dos outros, tecem-se no novelo da existência. Umas vezes é um emaranhado, outras vezes reduz-se a uma vanidade sepulcral. As ataduras do primeiro revolvem-se nas vagas alterosas do tempo que açambarca, pela sua finitude, os horizontes que se liquidam na necessária pequenez. As lautas ambições esbarram na tirânica dimensão do tempo. No novelo da simplicidade, o tempo é uma linha recta desprovida de espinhos, uma clarabóia por onde se extrai toda a claridade da existência.
Não param de sussurrar, num desafio que é um perene ecoar no labirinto da mente, quão efémeros são os instantes que se atropelam numa desordenada sucessão. O grande desafio é prolongar cada instante, como se houvesse forma de estender os minutos para além do espartilho das convenções. Ou como se fosse possível aos dedos entrarem na campânula dos relógios, retardando a marcha dos ponteiros com a sua força. Para estenderem o agora até entrar na dimensão que já pertence, pelos cânones de hoje, ao depois.
Só que os ideais tropeçam na paisagem que revolve os sonhos. À pungente existência não interessam os malabarismos oníricos. Os corpos movem-se nas contingências adulteradas pelos suspiros possíveis do tempo, fluindo ao sabor da corrente sempre cadenciada das clepsidras que estampam a temporalidade. Podemos ambicionar que o agora se prolongue para além da sua dimensão, podemos até inventariar um sofisticado catálogo de truques que atraiçoem os desagradáveis ponteiros dos relógios. Até podemos conseguir viver numa espécie de letargia onde todos os relógios se suspendessem de si mesmos.
Algures, contudo, os pés haveriam de aterrar no solo pedregoso. Retomariam o lancinante, inadiável espectro da invenção do tempo. Até que os relógios, todos os relógios, nem sequer fossem objectos de culto mesmo para os seus cultores. Seriam apenas uns biltres que advertem da impossibilidade do tempo perene. A imortalidade sobra para os sonhos. Podemos julgar que os deuses – ou apenas a sucessão de científicos actos que arquitectaram a existência – conspiraram contra as ambições de perenidade. Por isso inventaram o tempo. A medida dilacerante da nossa efemeridade. O tempo que corre à cadência dos dias e meses e anos lembra-nos que somos reféns da mordaça das clepsidras. Nestes relógios de água mergulhamos na negação da intemporalidade. Diz-se que emprestam à existência uma cadência desconfortável, como se fossem tiranos que asfixiam as esquálidas ambições de infinitude. Pelo contrário: a invenção de tempo tem a serventia de despertar da letargia própria de quem se entrega à dolência dos adiamentos. A terrível insensatez dos adiamentos, o mais que consegue é apascentar um arrependimento. E o arrependimento amplia a mordaz temporalidade.
Se é invenção, o tempo serve para que saibamos devorar a vida pelas entranhas, dela retirar tudo o que nela frutifica. O que interessa não é a ilusão do prolongamento de cada instante para uma dimensão etérea, uma dimensão que contraria a natureza do que é um instante. O que interessa é que haja milhões, e muitos, de instantes sedimentados.

24.8.10

The Black Keys, "Set You Free (Live TV)"

Só para chatear os comunas


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Digo, os nossos arqueológicos comunas, ainda embebidos na ortodoxia da saudade soviética, que os há a rodos por aí muito assertivos da sua ideologia. Que é uma espécie de religião. Como nas religiões, ai de quem puser em causa os dogmas. Os dogmas têm essa objectividade inatacável aos olhos de quem os professa. As verdades certeiras da linha do pensamento não os dispensam. Senão as verdades começam a ser ofuscadas por sombras temíveis.
O filme “O caso Farewell”, do realizador francês Christian Carion, narra uma história de espionagem entre a União Soviética, a França e os Estados Unidos passada em 1981. Tudo começa com um general soviético, magistralmente interpretado por Emir Kusturica, colocado num alto lugar e com acesso a documentação sensível. O general fartou-se da esclerose do regime comunista e contactou os serviços secretos franceses para passar essa documentação para o ocidente. O interlocutor é um engenheiro francês a trabalhar na delegação da Thomson Reuters em Moscovo. A pessoa mais insuspeita, porque nunca terá sonhado ser, ainda que inadvertidamente, um espião. Nem à asfixiante máquina dos serviços secretos soviéticos ocorreu que o irrelevante engenheiro seria o interlocutor da traição do general soviético.
Pacientemente, a informação passada desmantelou a imensa rede de espionagem que a URSS montara por dentro dos países ocidentais. Até que uma sucessão de coincidências leva à descoberta da trama. O engenheiro francês e família conseguem fugir a tempo. O general foi preso, torturado e executado junto ao lago onde passava as férias com a família.
Desconfio que os aduladores do comunismo não se hão-de incomodar em ver este filme. Se alguns deles se derem ao sacrifício, adivinho a urgência em desmontar a narrativa atribuindo-a à perseguição que ainda se faz ao comunismo. Dirão que tudo isto faz parte de uma tenebrosa conspiração para continuar o trabalho começado quando o traidor camarada Gorbatchev teve a insensatez de pensar a perestroika.
Os sinais exteriorizados pelo filme – o clima de terror psicológico pela permanente suspeição de que todos espiavam todos e que qualquer um podia ser denunciado por desvios aos padrões aceitáveis, as purgas de quem fosse considerado traidor, as execuções quase sumárias – são um retrato, dirão os nosso comunas, de um delírio que contaminou a mente do argumentista. Era tudo ao contrário: um paraíso, com infinita justiça social, liberdades a rodos, uma harmonia invejável que trazia consigo a felicidade genuína que no ocidente é corrompida pelo capitalismo.
Entendo o enfado dos comunistas indígenas se lhes entrar pelos olhos “O caso Farewell”. Bater nos mortos é aviltante. E se a primeira frase que surge no ecrã é uma advertência de que o filme romanceia a partir de factos verídicos, só por uma macabra curiosidade histórica (ou, diriam os nossos inflamados comunistas, por revisionismo histórico – modalidade em que, aliás, são pródigos) interessa vasculhar no passado para percebermos como o império comunista se começou a esboroar. Terá sido por dentro que o regime se corroeu, pelo desgaste causado pela sua própria erosão, na exaustão das liberdades em nome de uma causa a cada passo mais subjectiva e difícil de suportar. É compreensível que os comunistas caseiros acusem o filme de pertencer a uma disparatada teoria conspirativa. Que digam que a narrativa distorce os factos. Quando os dogmas são hipotecados, aos alicerces da metafísica só pode acontecer uma de duas coisas: ou implodem, ou se reforçam pelo estado de negação.
Mas, repito, é feio bater nos mortos. Daí a minha solidariedade com os comunas locais. Talvez percebem agora como é disparatada a retórica cansativa de quem ainda luta contra um “fascismo” que morreu há trinta e seis anos. Ou só os outros – os que se entretêm a fazer história filmada à custa do funeral do comunismo – é que ainda combatem moinhos de vento?

23.8.10

O homem de Massamá e o bobo dos Algarves


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O incomparável Mendes Bota, o bobo dos Algarves, o bardo pimba, apresentou o futuro primeiro-ministro como um homem de hábitos simples, que vive em Massamá e passou férias no Algarve numa modesta vivenda. Tudo o contrário do antecessor do futuro primeiro-ministro, que habita num luxuoso condomínio privado quando não dorme em S. Bento e passou férias num dispendioso resort de cinco estrelas.
Por imperativos de higiene mental, não me forço ao sacrifício das imagens da chamada “rentrée política”. O PSD num arraial popular no Algarve. O PS, dias mais tarde, Mangualde com o privilégio de receber em euforia o iluminado que nos governa. Sou, portanto, um espectador indirecto. Confio nos relatos dos outros, desses que, coitados, se prestam ao supremo sacrifício de deitar os olhos à indigência que desfila nestas “rentrées” partidárias.
Da “rentrée” socialista só vale a pena gastar um punhado de palavras. Tomara estivéssemos como o timoneiro da nação pintou no seu discurso. Se foi verdade o que li, de tão patético já só sobra a comiseração. O pior é que o tipo nem percebe como está em fim de estação. Por mais que teime em adiar a agonia – a falta de coragem em adoptar medidas de austeridade a sério é a prova de que conta com eleições daqui a pouco tempo (a Alemanha, que não deve estar pior, teve a coragem de cortar a eito) – o quadro florido e cheio de cores garridas é sintoma de um autismo incurável. Que, pelo meio, a seita socialista massaje um culto de personalidade digno dos panegíricos norte-coreanos, é sinal da desorientação de quem sente fugir o tapete (do poder) debaixo dos pés.
O cúmulo da imbecilidade, para não variar, veio do habitual bobo dos Algarves, o Mendes Bota que se gaba de ser um trovador pimba. Este Mendes Bota já pertence à galeria dos ilustres da estultícia. A cada ano que faz de mestre de cerimónias na “rentrée” apimbalhada no Pontal, oferece uma pérola de sapiência populista com o odor a chulé intelectual. Desta vez o bobo dos Algarves quis maquilhar a imagem do seu líder, dizem muitos, o futuro primeiro-ministro. Um retrato enternecedor, diria mesmo comovente, a puxar lustro à luta de classes que caía que nem fato de alfaiate se ali acontecesse um comício do PC ou da extrema-esquerda caviar. Pois o futuro primeiro-ministro (dizem oráculos suspeitos) é um homem modesto, com humilde residência na Massamá fora de moda. Em vez de ir de férias para um luxuoso resort que é um bunker à curiosidade da populaça (a escolha do actual timoneiro da nação), foi para a Manta Rota, um destino da populaça.
Já devíamos estar habituados a dar o devido desconto aos ditirambos do bobo dos Algarves. Afinal, precisamos de um palhaço que nos divirta – e a época estival é para isso mesmo, para a diversão. Falta saber o seguinte: aquilo foi uma escorregadela para o chinelo imputável ao bobo dos Algarves, ou a gente do PSD revê-se na narrativa? Neste caso, é o mal que se apodera dos partidos que se colocam no centro da paisagem partidária. São ambivalentes – aquilo que, noutros futebóis, se chama “dar para os dois lados”. Com esta imagem de um Salazar recauchutado (os hábitos monásticos, ou quase), querem tirar votos à esquerda que é titular exclusiva da imbatível consciência social? E onde fica o esvaziamento do CDS (pois não se vê o tradicional votante deste partido, a pender para o elitismo, seduzido pela narrativa classista)?
Os meus amigos do PSD virão dizer que ataques destes ao futuro primeiro-ministro só favorecem a sobrevivência do seu antecessor. Estou-me nas tintas. Concedo: pior do que o actual inquilino do poder é impossível. Mas não estou a ver que o seu sucessor seja tão melhor. E não o será com esta bazófia da personagem que veio do nada e mantém hábitos humildes. Lamento dizê-lo, essa não é credencial abonatória da qualidade da governação.

20.8.10

O homem belicoso


In http://www.teclasap.com.br/blog/wp-content/uploads/2007/12/arregacar_as_mangas.jpg
Coincidimos no passeio higiénico das nossas cadelas. De tanto coincidirmos na rua, fomos metendo conversa. Conversa puxa conversa, fui conhecendo melhor a têmpera do homem. Não há semana em que, uma vez pelo menos, não me conte conflitos em que está ou esteve metido. Faz gala em arrumar os conflitos com ameaças de violência.
Eu bem lhe digo, com a paciência a esgotar-se ao escutar a ladainha costumeira – pois tem o tremendo azar de esbarrar em criaturas que embirram com ele – que não ganhamos nada em fazer uma pega de caras aos problemas. Faz mal ao coração e aumenta a pressão arterial, disse-lhe um vez, sem reprimir uma certa ironia a que o homem não prestou atenção. Como é quase surdo, são monólogos as breves conversas que temos enquanto os cães derramam as urinas. Para me fazer escutar (que para me fazer entender seriam precisos mais vinte alqueires de inteligência) tenho que subir a voz e espaçar as palavras.
O rol de queixas engrossa-se com as semanas. Ora foi um vizinho que à saída da garagem queria prioridade sobre o homem belicoso e a sua cadela. Ora foi uma vizinha (que ele colou o rótulo de louca) que implicou com os dejectos dos cães que enxameiam o jardim, como se a culpada fosse a cadela daquele homem – e ele que tem o cuidado de usar os sacos de plástico colocados pela junta de freguesia para apanhar a merda canina. Ora foi um outro vizinho que ameaçou que punha veneno na relva para erradicar a praga de canídeos que faz do jardim a sua latrina, ao que o bravo homem terá replicado (disse-mo com indisfarçável garbo) que lhe dava “um tiro nas fuças” se isso acontecesse. Como estas implicações metem ao barulho gente que é minha vizinha, (coisa que o homem belicoso não é), ele lá achará que tenho ar de provedor da vizinhança ou coisa que o valha.
Noutro dia contou-me outra façanha, desta vez fora da minha área de jurisdição enquanto provedor da vizinhança. Foi multado porque estacionou a menos de dez metros de uma paragem de autocarro. Abordou a agente da autoridade que se entretinha a afixar papelinhos de multa nos pára-brisas de outros automóveis em contravenção. Protestou a multa – com modos, que uma farda sempre mete respeito. A senhora polícia não prestou atenção e, perante a insistência do homem, respondeu secamente: “dirija-se aos serviços da câmara municipal para liquidar a multa”.
Dias depois, o homem foi ao serviço competente. Com um azar danado, deu de caras com uma funcionária camarária mal-educada e antipática. Que, para cúmulo, caçoou do homem assim que ele voltou costas depois de ter liquidado a multa. “Veja lá, já não bastava ter que pagar a multa e ainda ter que aturar o gozo da senhora”, atirou, indignado, implicitamente solicitando a condescendência com o seu infortúnio. É claro que o homem não podia meter a viola no saco. Deu meia volta e reprimenda audível à senhora, entretanto acabrunhada. Tão audível que o segurança de serviço apressou-se a indagar a razão da algazarra, convidando o belicoso homem a abandonar as instalações e a não incomodar os funcionários e demais utentes. Como também seria óbvio, o segurança não se ficou sem resposta: “não se meta que isto não tem nada a ver consigo”.
Contrariado, escutava isto tudo e apeteceu-me perguntar se a funcionária camarária que lhe cobrou a multa terá zombado dele. Assim como assim, o homem é surdo que nem uma porta. Como naquela altura o que mais me apetecia era estar noutro lugar, fui eu que meti na viola as palavras que me apetecia dizer. Agora, quando posso evito o homem rabugento. Discretamente mudo de passeio se o vejo à distância. Há boçalidades de variadas categorias. Uma das maiores boçalidades é a de gente que vive para alimentar conflitos, como se eles fossem o seu particular oxigénio.

19.8.10

Para a caderneta dos cromos


In http://estb.msn.com/i/A4/A062A832F123A8F2D76997B1F6249.jpg
Que me seja permitido este laivo de humor negro: os incêndios têm a serventia de nos dar a conhecer essa (em linguagem sampaísta) incontornável figura da república – o ministro Rui Pereira. É óbvio que lamento toda a área ardida. É pungente, como ontem dei conta numa viagem pelo Minho, que as árvores calcinadas tenham tomado conta da paisagem, a própria terra onde elas assentam assustadoramente encardida. Mas são um regalo para a vista as aparições do ministro das polícias que, nesta época estival, se transforma no ministro dos incêndios – bem entendido, no ministro do combate aos fogos.
Na minha caderneta de cromos, o ministro Pereira é o cromo dos cromos. De tal maneira que ando a pensar em espalhar uma petição internética que garanta, no adivinhado ocaso da malta socialista, que o ministro Pereira transite para o próximo governo do PSD (ou do PSD-CDS, ou de iniciativa presidencial, ou lá o que for, desde que seja diferente do que há). O homem devia ter lugar vitalício no governo. É um sossego vê-lo no “teatro das operações”, sempre impecavelmente engravatado no meio da chuva de cinzas soprada pela brisa cálida que transporta aquele insuportável odor a queimado. Se eu fosse bombeiro, só de ver o ministro falar, mesmo quando aproveita para fazer propaganda que adorna a imagem do governo, bebia naquelas sábias e sóbrias palavras o lenitivo para não dar tréguas aos teimosos fogos que devastam a floresta.
Para além disso, o ministro Pereira tem um verbo – como dizer? – letrado. Pode não falar para o comum dos mortais, pois ao falar parece que está a redigir uma lei, naquele “juridiquês” tão típico que nem os juristas, a páginas tantas, conseguem entender o arrevesado “juridiquês” que sai das suas penas. Já não é deste tempo, em que a língua escrita e sobretudo falada é tão mal tratada, termos o deleite de ver alguém a falar de improviso com tanta eloquência. O mal não é do ministro Pereira. É das escolas que não conseguem treinar os cidadãos para o uso polido da língua. Ou dos cidadãos que são fraca gesta.
Contudo, o ministro Pereira não dá o flanco e, nos seus soporíferos discursos à frente das câmaras de televisão, fala para o doutor e para o “desintelectual”. Um dia destes explicava na rádio os infaustos acontecimentos, debitando estatísticas que mostravam como nos dois últimos meses de incêndios ardeu mais do que nos três anos anteriores. E tal como o seu supremo chefe atira as culpas da austeridade para a danada crise internacional que é um polvo que de tudo se apodera, o ministro Pereira advertia que a orografia não ajuda a travar o combate aos incêndios. (Podemos ser uma terra pequenina, mas temos uma orografia acidentada que é pasto para o fogo caminhar até onde possam estar os bombeiros). Tomando consciência que muita gente não sabe o significado de “orografia”, o ministro Pereira meteu uma vírgula à frente de orografia para explicar aos incautos que aquilo quer dizer “as condições do terreno”.
O ministro Pereira é daquele escol que nasceu para ser servidor do Estado. Não conheço ninguém que tenha tanta pose de estadista. Transpira estadismo. Tenho a impressão que até nos momentos mais íntimos com a consorte não deve conseguir despir a casaca de estadista. Será que o ministro Pereira trata alguém por tu? Por isso é que sugeria lá atrás que devia correr uma petição para que a Constituição (agora que tanto se discutem as desejadas mudanças no texto) incorporasse uma norma com a vitalícia condição de ministro para o ministro Pereira. Ministro do que quer que seja, pois a sua versatilidade presta-se à ocupação de todas as pastas.
O seu bilhete de identidade devia mudar. No campo destinado ao nome, “Ministro” devia preceder “Rui”.

18.8.10

New Order, "Thieves Like Us"

Esta crisálida não mortal


In http://lh4.ggpht.com/_W_zwGFMzwlI/SokNR1TDjmI/AAAAAAAA4ik/JhlESNog_ok/fada.jpg
Não sei. Talvez seja apenas pudor de abrir às palavras públicas os sentimentos que povoam as veias. No catálogo das palavras proibidas em forma de escrita, amor. Talvez, talvez apenas, desamor embebido na maior das privacidades (do amor).
Já está. A palavra pronunciada. Há poetas que fazem gala em compor estrofes épicas, outras condoídas. Depende da sorte que os acompanha ou da desdita que encima as abortadas tentativas de trovar o verbo, de o sentir e de encontrar os complicados caminhos da correspondência. Poetas que não acertam a agulha, as cobiçadas amadas em perene desdém das suas destravadas pessoas. Alguns dizem que são estes padecimentos que apuram o sentido poético, como se fosse a decantação que purifica um néctar vínico. Por isso insistem que o cálice que lhes é dado a provar é uma cicuta necessária. Os inditosos ensaiam preces lacrimejantes, convocando a comiseração alheia. Pode ser que uma leitora se condoa – uma leitora amordaçada pelos mesmos padecimentos, ou uma fulgurante deusa que se encante com os gorjeios lamentosos e, num assomo de generosidade, por ele se enfeitice. E essa leitora faça a síntese do horizonte das necessidades sentimentais de um poeta que deixara de ser prometido fracassado amante.
Uns lampejos que quebram a monótona assepsia do desamor. Umas lancinantes decepções amiúde que se traduzem no fel de um monástico isolamento. Quando por vezes irrompe do frio da noite um sobressalto que destrói as plúmbeas nuvens que teimavam em cobrir o horizonte, harpeja uma melodiosa, frenética irrisão da existência pretérita. O poeta, macerado pelos tantos anos de solidão, desconfia. É como se estivesse diante de uma crisálida fulgurante, encantado pelas formas exóticas e pelo aroma anestesiante, mas sempre com os dois pés metodicamente à distância. Sabe que fora mordido pelas serpentes venenosas do desamor vezes sem conta. Sabe que as serpentes se desprendiam das crisálidas resplandecentes que logo se transformavam numa cadavérica, seca flor.
É um dilema que caldeia a lucidez. As já tantas vezes que saíra condoído não dispunham o corpo para a espontaneidade dos sentimentos. Tudo era filtrado, decantado até à mais irrisória molécula. Sentia-se prisioneiro da ditadura meticulosa que os achaques transitados fermentaram. Queria tocar na crisálida, percorrer-lhe todas as reentrâncias de exotismo, aproximar o nariz para de perto provar o aroma extasiante, sair de si e entregar-se à voragem dos impulsos que retiram lucidez à coreografia do amor. Sair de si e entregar-se a alguém. A racionalidade do tamanho do mundo era o paredão de uma enorme barragem onde as pulsões eram domadas. Os medos de antanho sobrepunham-se em forma de maestrina da danada racionalidade. Ele era o seu próprio fautor de platonismo. Os espartilhos da própria existência preveniam a entrega de si a alguém. Temia deixar de ser quem sempre fora – mesmo que essa não fosse credencial que deixasse um rasto de orgulho.
Ensimesmado, pretendia ser de si o seu próprio amante. Ninguém mais do que ele conseguia arrebanhar tamanho amor. Deitara-se no corrosivo colo de um erro fatal. O ensimesmamento destruía a capacidade de se projectar no exterior de si. A imagem da crisálida, de uma crisálida todavia não mortal, sugeria-lhe escondidos fantasmas a adejar por de cima da crisálida, deliciosa e pérfida, diante de si. Algum dia haveria uma crisálida não mortal, uma crisálida em dessemelhança com as demais em que se empenhara, das outras que se verteram em metamorfose de uma letal, venenosa serpente.
Os higiénicos labirínticos de tão metódica mente insistam na repetibilidade das coisas. Era a maior das emboscadas em que se diluía. As ameias tão altas de um invisível castelo, a levedura do ensimesmar que o levara a um doentio narcisismo de isolamento. 

17.8.10

Sexualidade mal resolvida?


In http://meninostambempodem.files.wordpress.com/2009/08/jeanphillipss1016.jpg
(Aviso: texto que, sem ser homofóbico, é eventualmente chocante para os detractores da homofobia. Como já dei provas abundantes de que se há defeito que não me apontam é a homofobia, estou-me nas tintas se, ao esbarrarem neste texto, os detractores da homofobia me crucificarem.)
A pergunta que formulo é a seguinte: quem tem a sexualidade mal resolvida – os mitos andróginos ou as adolescentes que os endeusam?
Mandam as generalidades dizer (essa coisa tão traiçoeira) que a adolescência é uma idade parva. Temos essa percepção se, num pequeno esforço, formos ao baú das recordações. Por outro lado, os modismos são voláteis com o tempo que viaja pelo calendário. O que hoje achamos – cá do alto da nossa soberba já maturidade – ridículo ou, numa versão mais simpática, bizarro, foge desses cânones quando interiorizado pelo código de conduta dos agora adolescentes. É problemática a dialéctica das gerações. O que talvez não nos lembremos é que antes já nos tocou esta incompreensão debitada pelas que na altura eram as pessoas que agora têm a nossa idade.
Lá chega a altura em que deslizamos para a sobranceria geracional. Nem que seja uma espontânea, irreprimível escorregadela, mas chegamos lá. Nisto arrisco a adivinhar o consabido “quem atira a primeira pedra”, pois se cometermos a ousadia talvez a pedra se despenhe com estrondo sobre a própria cabeça, estilhaçando o telhado de vidro (outro lugar comum).
Entre a semântica e os tiques observáveis da adolescência actual há um aspecto que ultrapassa a compreensão: a adoração que as meninas têm por mitos masculinos que cultivam uma imagem andrógina. São aquelas adolescentes que disparam gritinhos histéricos quando os venerados ídolos estão diante delas, desempenhando no palco. Não há novidade nos gritinhos histéricos – vêm do tempo dos Beatles, mas há que convir que os Beatles podiam ser irritantes em muitos aspectos mas não tinham aparência efeminada. Ora, o que ajuizar de meninas que à frente de um qualquer microfone fazem as tristes figuras de se ajuramentarem no platónico amor eterno aos mitos que nunca chegam a ser de carne e osso, quando esse mitos mais parecem femininas criaturas? O leigo no assunto arriscaria dizer, não obstante a sua condição de leigo, que estas adolescentes navegam nas águas agitadas da sexualidade que nasceu (ou entretanto se fez) mal resolvida – ou, pelo menos, redefinida sexualidade.
Passo à teoria: nasceram meninas, cresceram habituadas (ou educadas) a gostarem do sexo oposto – toda aquele imaginário escolar de terem ingénuos namoros desde a tenra idade – para chegarem à adolescência embeiçadas por ídolos pós-adolescentes que se puseram nos antípodas da masculinidade. Ou as meninas se deixam cegar pela condição de ídolo em que entronizam os seus andróginos mitos, nem dando conta que eles mais parecem tão elas como elas o são, pois como ídolos que são tudo lhes é permitido (o que já seria motivo de chacota se esses comportamentos e figuras fossem assumidos por um comum dos mortais); ou este é o sinal de uma nova sexualidade que nelas desponta, aprendendo, através dos mitos efeminados que muito provavelmente transitam pela homossexualidade, que do que elas gostam é de outras elas.
Acho que nisto – a franqueza de não assimilar certos modismos adolescentes – há a distinção de outros contemporâneos geracionais que fazem gala de os acompanhar nesses modismos. Que me perdoem outra franqueza, mas assemelha-se-me patético esse esforçado rejuvenescimento geracional, ou pelo menos a tentativa de falarem a mesma linguagem de quem não os quer metidos nessa dialéctica. Para quem está de fora, é pungente ver o fracassado dialogo entre as vetustas personagens que aplaudem o modismo adolescente do momento e os adolescentes que para eles olham como corpos estranhos a tentarem invadir um terreno que, manifestamente, não foi feito para esses corpos. Porventura uma metáfora para outro tipo de sexualidade mal resolvida, a desta gente mais velha.

16.8.10

Morphine, "French Fries With Pepper"

E se acabassem com as universidades?


In http://arre-burro.weblog.com.pt/arquivo/burro%20com%20livros.jpg
A revista Pública de ontem trazia uma reportagem de fundo com uma mão cheia de exemplos de self-made-man que vingaram na vida sem terem estudos universitários. Quem não se enternece com as excepções da vida, os exemplos que dedilham as cordas do lirismo e nos mostram como é possível chegar ao ambicionado sucesso remando contra todas as marés? Quem não verte uma lágrima furtiva naquele filmes xaroposos que narram historietas de encantar, os contos de fadas em versão hodierna?
O raciocínio que se segue pode soar a corporativismo, pois hão-de julgar que estou a defender a minha dama (e, eventualmente, o ganha-pão). Prometo um esforço de transcendência num assunto que me interessa tão de perto, mas fica à partida o registo de interesses que, admito, pode prejudicar a imparcialidade.
Para início de conversa, também aplaudo as pessoas que conseguiram vencer na vida sem terem queimado as pestanas e aturado uns maçadores professores nos bancos da universidade. Como não custa admitir que um título universitário não é condição para vingar no que quer que seja – serviço público, conselho de administração de uma famosa empresa, ou mesmo propriedade de uma empresa que atinge uma macro dimensão. Os estudos universitários são uma ferramenta, não uma garantia. Como também não são – e muito menos o são – uma condição sine qua non para o estrelato. Para terminar os intróitos de contextualização, nada contra as reportagens da imprensa que romantizam estas excepções, atirando para os olhos dos iludidos mais pétalas de ilusão.
O que parece não bater certo é um dos modismos dos modernos “pedagogos” ao serviço do governo e os self-made-man retratados com tanto embevecimento. Desde há alguns anos vingou uma versão adaptada das “novas oportunidades” às universidades, conhecida como “mais de vinte e três”. O apogeu da democratização do acesso à universidade. Para quem tem mais de vinte e três anos e dois anos de experiência profissional, as portas da universidade ficam escancaradas. Não é preciso ter chegado ao décimo segundo ano.
Com este demagógico programa de democratização da universidade a mensagem enviada é a seguinte: se algum dia ambicionou ter um canudo, mas vicissitudes diversas o obrigaram a deixar pelo caminho os estudos, agora é todo um mar de facilidades. Vamos todos ser doutores e engenheiros. Só que depois lemos a lírica reportagem na Pública e perguntamos se a democratização do acesso à universidade não passa de um engodo. Assim como assim, ele há um punhado de self-made-man que subiram na vida e não precisaram de andar a perder tempo na universidade.
A reportagem na Pública não bate certo com a demagogia dos “pedagogos” que inventaram a democratização das universidades. E também não bate certo com a (inútil) competição europeia pelas estatísticas que tabela o rácio de estudantes universitários por habitante e assegura que quanto maior for o rácio mais avançado é o país. Mas a maior das contradições diz respeito a duas marés opostas entre os “pensadores” da educação. De um lado, incentivam todo e qualquer cidadão a tirar um curso superior e, do outro lado, patrocinam a mediocridade nas escolas secundárias quando congeminam planos para liquidar as reprovações. De um lado, fingem que promovem a excelência (e digo fingem porque o programa “mais de vinte e três” não passa de lenha para a fogueira das vaidades estatísticas). Mas do outro lado, estimulam a mediocridade.
Desconfio que percebi onde querem chegar estas luminárias das “ciências da educação”: um dia destes, vão estender a impossibilidade de reprovações às universidades. Só que, nessa altura, quando o elogio da mediocridade estiver definitivamente instalado em todo o sistema educativo, como se explicam os notáveis exemplos de self-made-man às criancinhas e às já nada criancinhas que vão tardiamente para a universidade?

13.8.10

Manual da transgressão


In http://www.tmdesign.pt/web_natal/MalaguetaW.jpg
As coisas são resolvidas, decididas, pelo código das proibições. Por isso há uma certa tentação pelo que as convenções não permitem – no terreiro dos lugares-comuns, dir-se-ia a tentação do fruto proibido. A apetecível transgressão. Se calhar, nem vem ao caso tratar-se de rebeldia juvenil mal resolvida. É a fruição da liberdade acossada por um espartilho de proibições, de regras de conduta que nos toureiam docemente dentro da praça onde os corredores do admissível se estreitam a cada nova invenção dos engenheiros sociais.
A manta de retalhos de leis e regulamentos que proíbem a torto e a direito, e das outras que impõem condutas sob o jugo da multa ou até do cárcere, são a privação da livre existência. Apetece o dissídio, romper a apertada malha das imposições e das proibições que cerca por todos os lados. O corpo atira-se espontaneamente para as águas onde navegam as transgressões. Espontaneamente. As curas estão todas nas condutas reprováveis. O mundo deixa de ser aquele lugar onde devemos ter os passos todos certos, sem haver passos em falso que são implacavelmente castigados pelos muito atentos zeladores do rebanho obediente.
Talvez seja a ambição de romper com os exagerados passos certos quando a idade se punha a jeito para a rebelde transgressão – um arrependimento de oportunidades não apanhadas entre os dedos. Talvez seja devido, também, ao ar cada vez mais irrespirável onde se amontoam as regras, as proibições, a legislação sobre tudo e mais alguma coisa. Como se nada, mesmo nada, escapasse ao jugo vigilante do legislador que entrou no corpo dos modernos engenheiros sociais. Só apetece transitar pelas vias que são vedadas e patrulhadas pelos beleguins das boas condutas. Desafiando-os, mais às regras e proscrições que pastoreiam. No jogo do toca e foge, pisando o risco sem temer a proeminência ofegante que se conjuga com os milímetros que separam do profundo precipício.
A par da transgressão, o saboroso riso de escárnio na cara dos paternalistas curadores do nosso bem-estar. Que raio de pretensão têm estes mentores de um rebanho obediente, a de julgar que são imprescindíveis para nos conduzirem através dos bons caminhos ditados pelas numerosas regras de conduta e proibições. É o paradoxo da modernidade. Tudo parece fluir no sentido contrário da maré. Tanta a informação, tanta a matéria-prima que nos habilita a sermos autónomos, seres pensantes capazes de discernir o que satisfaz o bem-estar individual. E, todavia, somos esmagados pela prolixa actividade dos engenheiros sociais que interferem e interferem, nisto e naquilo, tartamudeando as liberdades com o seu baraço impositivo. Não pode a sua actividade ser dispensada, assim ajuízam numa autocontemplação da sua baça magnificência. Para o bem da humanidade. Para o avanço da humanidade. Grotesco paradoxo este, quando os passos em frente na civilização dependem da dependência dos actores em relação aos agentes.
Este quadro traiçoeiramente luminoso é o cenário para todas as transgressões. Uma proibição convida ao seu ostensivo espezinhar. O clarão que se incendeia naquele quadro de putativa civilização é um logro. Apenas um pérfido lençol que esconde um céu sombrio, o céu que acabrunha a existência, a individualidade. Ao ser atraído ao quadro, e uma vez capturado dentro dele, sobra a dignidade de ser insurgente. Ou a cedência ao infindável trilho de regras e proibições que perpassa a subordinação do ser ao imaginário do colectivo. Através do qual os que se entronizam no papel de modernos condutores de almas abusam do poder que açambarcaram.
Chame-se-lhe rebeldia, anomia, anarquia, transgressão, o império da desordem, o que seja. A transgressão que aparece, convidativa, a irromper no horizonte dominado pelo marasmo segue um manual onde a única regra é desfiar as regras debruadas pelo ouro da autoridade legal.  

12.8.10

Preconceito das feministas


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEioKgmTGH89LgH-SFtbkrqLEKECKOsAw9Y-njU-zeURObEm5QOOkCWYdbKPFenJ8cIL6-DqkPBez_HyFeNcJcdKOMpUi6GWrF5_ZQmNV0gsPeuA9Ih3NY3q1d_agrswABCZUtH93A/s400/Guerra+dos+sexos+4.bmp
Não é por maldade que o faço – apontar, com uma indisfarçável ponta de orgulho, brechas na, à partida, inviolável muralha da coerência de certas vanguardas do pensamento. O gosto é redobrado quando exemplares do pensamento feminista caem na armadilha, elas que estão sempre dispostas a ensinar lições de moral ao pensamento politicamente correcto.
Num júri académico, os nefandos varões estavam em maioria – dois contra uma. Por causa das regras, a colega com vagina tinha mais tempo de antena, pois cabia-lhe a crítica da tese. Mesmo no final da intervenção, atirou-se à aluna criticando-a por fazer sucessivas referências ao “Homem”. Nos tempos modernos que atravessamos, que não se compadecem com tacanhos padecimentos da desigualdade dos sexos, não se admite a utilização de “Homem” em discurso académico. Mais ainda quando a autora é, ela mesma, uma mulher. Tirou da cartola a lição de sapiência politicamente correcta: não é “Homem”, é “ser humano” ou “humanidade”.
Deve ser trauma. Ou a importação de um modismo do discurso académico anglo-saxónico que se esforça em combater as desigualdades entre sexos. Depende dos ramos das ciências sociais, pois nem toda a literatura conseguiu atingir este elevado grau civilizacional que se insinua nos textos que, para não melindrarem consciências, são nutridos em exemplos que liquidam as diferenças de sexos. Quando exemplificam algo que obriga a associação a um sujeito, os textos da “vanguarda académica” usam fórmulas como “he/she” ou “his/her”. Em alguns casos, dando o braço a torcer aos maravilhosos parâmetros da discriminação positiva, o masculino soçobra perante o feminino – e nos exemplos aparece apenas “she” ou “her”.
Quando a colega do júri lamentava, com umas pétalas de superioridade moral, que a aluna ainda estivesse nas trevas do discurso académico e estendeu a lição aos varonis membros do júri, apeteceu-me lembrá-la de uma incongruência do modismo feminista que meteu lança no tal discurso académico. É que humanidade em inglês diz-se “mankind”. Uma palavra composta – “man” mais “kind”, o que, traduzido à letra, daria “espécie do homem”. Em que ficamos? Importamos do discurso académico anglo-saxónico o código semântico, mas ignoramos o léxico inglês? Daqui fica uma sugestão para alimentar o verão tórrido das feministas exaltadas: refaça-se o léxico inglês. É inadmissível que o discurso académico já tenha incorporado os ditames politicamente correctos da igualdade de sexos e o léxico ainda esteja três passos atrás. Uma língua só é viva se for capaz de se adaptar ao andamento dos tempos. “Mankind” é uma exibição da atrofiada superioridade masculina de antanho, código genético de uma humanidade atrasada.
Regresso ao início do raciocínio. É divertido ver gente que se ufana de estar três passos à frente da atrasada maralha – e que, nessa condição, contribui para o avanço da humanidade repetindo as lições de moral que forem precisas. Gente que denuncia os outros por continuarem mergulhados em preconceitos que, mesmo sem darem conta disso, prolongam a desigualdade de sexos. É divertido vê-los, tão modernaços, tão convencidos que os preconceitos pertencem aos que denunciam. E depois vê-los afocinhar estrondosamente em preconceitos de sinal contrário. É que mudar as convenções da linguagem em função das necessidades de uma causa que se defende tão a peito é um preconceito. É a própria semântica que deve sucumbir perante as conveniências da causa feminista. Ora isto tresanda a preconceito (para não dizer a cegueira).
Se estes preceitos que adulteram as convenções da língua vingarem, quando um grupo for composto por “n” mulheres e um só homem proíba-se a utilização do género masculino que logo contamina o grupo com duas máculas: uma, a perpetuação da dominação máscula; a outra, a antidemocrática desonra, pois não é aceitável que o género em minoria seja o denominador comum daquele grupo. Os linguistas, filólogos e autores de prontuários que estejam atentos à espada de Dâmocles das feministas, não vá pesar sobre eles o opróbrio da tacanha desigualdade de sexos.