3.8.10

Manual de etiqueta para quem frequenta transportes públicos


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Um criativo funcionário público descobriu, entre dois dedos de tédio no gabinete com vista para o Tejo, que a maralha devia andar ordeira quando mete os pés nos transportes públicos. Já que está na moda a comparação entre o que somos e os nórdicos, levemos a comparação para outras áreas. E já que não conseguimos ser o povo ordeiro que os engenheiros sociais com lugar nos ministérios acham que os nórdicos são (como estão enganados...), há-de lá ir à força de lei.
Frequentar transportes públicos também é um acto de cidadania. Exige responsabilidade aos utentes. Como nisto não estamos todos nivelados pela mesma bitola, as autoridades fazem notar a sua presença. Regulamentando. Proibindo. Fixando sanções para os que se estiverem nas tintas para o regulamento. Algum dia haveremos de ser um rebanho ordeiro, só cabeças obedientes, maquinalmente seguidoras dos milhentos bons mandamentos que as autoridades espalham em forma de lei, regulamento, postura municipal e muito etc.. Haja capacidade para absorver a enxurrada de proibições. Só temo que, nessa altura, vivamos cercados pela asfixia proibicionista. Com o receio de pormos o pé para além do risco da legalidade. É o esplendor do socialismo.
E assim os utentes de transportes públicos vão obedecer a um código de conduta. Uma vista de olhos a algumas das sumptuosas proibições que vêm no código de conduta, pois. Há imposições que conduzem o rebanho desde que entra no transporte público até à sua saída: respeitar as filas, entrar depois de todos terem saído, não entupir a entrada, não abrir as janelas para impedir que o ar condicionado fuja para o exterior. Há algumas que são tão óbvias que me pergunto se não são redundantes: não fumar (olha que novidade!), não comer, não beber. Também se impede os ganapos (pois esta é-lhes destinada) de terem a generosidade de partilhar a sua música com os outros passageiros.
Aqui os proibicionistas deslizam para matéria volátil. Este é o mandamento: os passageiros não devem partilhar música que seja “incómoda” para os demais. Estes podem-se sentir perturbados com o “ritmo” daquela música. Ora a subjectividade destrói pela raiz esta proibição. O que é música incómoda para a gente que vai numa carruagem de metro? Basta ser incómoda para um mal disposto passageiro? Para a maioria – e quem faz a contagem dos incomodados? O heavy metal é incómodo, mas José Malhoa já não é? Talvez não fosse má ideia espalhar uns funcionários públicos que ajuizassem o que é música incómoda, com autoridade para apreender os objectos que difundem essa música.
Há uma proibição que roça o deplorável. Entra de mansinho, pela porta lateral, para atingir em cheio o alvo que pretende. “E porque estamos no Verão” – assim começa esta parte da notícia – os passageiros devem andar com roupa fresca, de preferência linho ou algodão. As gentes devem tirar do armário a roupa em poliéster, pois – ensinam, com imensa paciência pedagógica, os educadores dos transportes públicos – essa roupa amplifica os odores corporais. Que é como quem diz: se não têm hábitos de higiene decentes (o banho diário), evitem transportar o cheiro a cavalo para os transportes públicos.
É por isso que se entende o conselho de uma socialite especialista em boas maneiras que foi consultada para, talvez, conferir um manto de autoridade ao código de conduta. A inefável Paula Bobone aconselha que as pessoas mantenham “alguma distância entre elas”. Não vá dar-se o caso de alguém se incomodar com o cheiro do próximo, ou até de haver contactos corporais que alimentem potenciais infidelidades. Gostei do conselho deste ícone das boas maneiras – apesar de ter ficado na dúvida sobre a quantificação de “alguma distância”. Está-se mesmo a ver que o conselho é praticável nas horas de ponta, quando os transportes públicos andam apinhados. É a fatal traição de quem deve andar tanto de transporte público quantas as vezes que a Rádio Renascença passa músicas do candidato presidencial Manuel João Vieira.
(Em Santa Eulália)

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