9.8.10

O que é a loucura?


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A mente sobressaltada por vozes fantasmas, por ideias açambarcadas pela esquadria singular, a esquadria que se entretece retorcida. O sono que não chega quando deve, ou o sono atormentado por pesadelos malogrados que depois se perpetuam para fora do sono. O mundo interior em os loucos que se consomem é de uma complexidade atroz. As portas são um alpendre de onde avistam um imensidão de prédios encavalitados uns nos outros com uma multidão faminta a apontar-lhes o dedo. Condenando-os a uma reclusão dentro de si. São malquistos na loucura que se passeia pelas sombras da existência.
Os medos povoam-se como rochas cortantes. Elas esbarram de frente contra o peito desprotegido, agredindo a ingenuidade dos que nem imaginam a crueza do mundo. Do lado de cá, os apoderados da lucidez julgamo-los pelas formas diferentes de loucura que estão catalogadas. Não resisto a uma porventura banal interrogação: e será que não estão os padrões do julgamento ofuscados pelo alçapão da parcialidade? Não será a lucidez uma armadilha que cauciona as coisas mais terríveis que louco algum – um louco assim sancionado – seria capaz de pautar?
Eles conseguem erguer as complicadas peças de um mundo particular que é enigmático. Onde julgamos haver incapacidade existe um sublime dom para decifrar o mundo nas fronteiras que nos são dadas a perceber apenas numa estreita banda onírica. Quantas vezes os ininteligíveis sonhos que se fazem imperadores do sono não pertencem ao domínio da loucura? Afinal, talvez o que nos separe dos loucos é uma ténue fronteira. Os pedaços de sonhos que cavalgam numa loucura indomável estão pegados à matéria onírica. Os loucos transbordam-nos para a irrequietude da existência acordada.
Uma vez, vi um velho homem que arrastava os andrajos e a barba hirsuta e imunda, discursando em voz audível um amontoado de palavras que não compunham duas ideias claras. Passava pelas pessoas sem notar a sua presença, compenetrado na filosofia insana que ia debitando em voz alta, perante a comiseração de uns e a indiferença da maioria. Que males se apoderaram da mente para aquele velho chegar a semelhante estado de desprendimento? Que vis torturas lhe assaltavam o cérebro enrugado pelo maior dos sofrimentos – o sofrimento de quem anda aos trambolhões nos corredores exíguos do pensamento assoberbado? Seria capaz de distinguir um enferrujado portão de ferro de uma andorinha em voo primaveril? O olhar ingénuo e esperançoso de uma criança da ganância com que o rio flui em direcção à sua foz? Os exíguos corredores da conturbada existência seriam um lugar diferente onde se compunha o seu muito particular mundo, a sua – aos nossos olhos – particular tortura. Com as cores de significado só dele, os percursos só com sentido para o velho carcomido pela demência por nós decretada.
Segui-o à distância durante uns minutos. O caminho errático continuava a ser pontuado pela oratória que, do lado de cá da lucidez, era desprovida de sentido. Às vezes parava para contemplar o céu e calava-se. Ficava extasiado durante uns segundos, como se o dia soalheiro aplacasse o sobressalto constante. Não demorava até se deixar tomar pela fúria interior metendo os pés ao caminho, desatando a proferir o aluvião de palavras deslaçadas naquele tom de voz que fazia desviar o olhar dos transeuntes.
A meio da deambulação errática curvou o sentido e veio na minha direcção. Cruzámo-nos. Notei então, ao perto, o olhar perdido no firmamento. Um autómato a errar sem destino, os olhos vidrados num longínquo horizonte que trepava os elevados prédios e as montanhas que se adivinhavam no conhecimento da geografia. Como se o homem, em vez de olhos, apenas tivesse as cavidades. Os olhos sugados pela demência destrutiva.
(Em Santa Eulália)

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