20.8.10

O homem belicoso


In http://www.teclasap.com.br/blog/wp-content/uploads/2007/12/arregacar_as_mangas.jpg
Coincidimos no passeio higiénico das nossas cadelas. De tanto coincidirmos na rua, fomos metendo conversa. Conversa puxa conversa, fui conhecendo melhor a têmpera do homem. Não há semana em que, uma vez pelo menos, não me conte conflitos em que está ou esteve metido. Faz gala em arrumar os conflitos com ameaças de violência.
Eu bem lhe digo, com a paciência a esgotar-se ao escutar a ladainha costumeira – pois tem o tremendo azar de esbarrar em criaturas que embirram com ele – que não ganhamos nada em fazer uma pega de caras aos problemas. Faz mal ao coração e aumenta a pressão arterial, disse-lhe um vez, sem reprimir uma certa ironia a que o homem não prestou atenção. Como é quase surdo, são monólogos as breves conversas que temos enquanto os cães derramam as urinas. Para me fazer escutar (que para me fazer entender seriam precisos mais vinte alqueires de inteligência) tenho que subir a voz e espaçar as palavras.
O rol de queixas engrossa-se com as semanas. Ora foi um vizinho que à saída da garagem queria prioridade sobre o homem belicoso e a sua cadela. Ora foi uma vizinha (que ele colou o rótulo de louca) que implicou com os dejectos dos cães que enxameiam o jardim, como se a culpada fosse a cadela daquele homem – e ele que tem o cuidado de usar os sacos de plástico colocados pela junta de freguesia para apanhar a merda canina. Ora foi um outro vizinho que ameaçou que punha veneno na relva para erradicar a praga de canídeos que faz do jardim a sua latrina, ao que o bravo homem terá replicado (disse-mo com indisfarçável garbo) que lhe dava “um tiro nas fuças” se isso acontecesse. Como estas implicações metem ao barulho gente que é minha vizinha, (coisa que o homem belicoso não é), ele lá achará que tenho ar de provedor da vizinhança ou coisa que o valha.
Noutro dia contou-me outra façanha, desta vez fora da minha área de jurisdição enquanto provedor da vizinhança. Foi multado porque estacionou a menos de dez metros de uma paragem de autocarro. Abordou a agente da autoridade que se entretinha a afixar papelinhos de multa nos pára-brisas de outros automóveis em contravenção. Protestou a multa – com modos, que uma farda sempre mete respeito. A senhora polícia não prestou atenção e, perante a insistência do homem, respondeu secamente: “dirija-se aos serviços da câmara municipal para liquidar a multa”.
Dias depois, o homem foi ao serviço competente. Com um azar danado, deu de caras com uma funcionária camarária mal-educada e antipática. Que, para cúmulo, caçoou do homem assim que ele voltou costas depois de ter liquidado a multa. “Veja lá, já não bastava ter que pagar a multa e ainda ter que aturar o gozo da senhora”, atirou, indignado, implicitamente solicitando a condescendência com o seu infortúnio. É claro que o homem não podia meter a viola no saco. Deu meia volta e reprimenda audível à senhora, entretanto acabrunhada. Tão audível que o segurança de serviço apressou-se a indagar a razão da algazarra, convidando o belicoso homem a abandonar as instalações e a não incomodar os funcionários e demais utentes. Como também seria óbvio, o segurança não se ficou sem resposta: “não se meta que isto não tem nada a ver consigo”.
Contrariado, escutava isto tudo e apeteceu-me perguntar se a funcionária camarária que lhe cobrou a multa terá zombado dele. Assim como assim, o homem é surdo que nem uma porta. Como naquela altura o que mais me apetecia era estar noutro lugar, fui eu que meti na viola as palavras que me apetecia dizer. Agora, quando posso evito o homem rabugento. Discretamente mudo de passeio se o vejo à distância. Há boçalidades de variadas categorias. Uma das maiores boçalidades é a de gente que vive para alimentar conflitos, como se eles fossem o seu particular oxigénio.

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