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Não é por maldade que o faço – apontar, com uma indisfarçável ponta de orgulho, brechas na, à partida, inviolável muralha da coerência de certas vanguardas do pensamento. O gosto é redobrado quando exemplares do pensamento feminista caem na armadilha, elas que estão sempre dispostas a ensinar lições de moral ao pensamento politicamente correcto.
Num júri académico, os nefandos varões estavam em maioria – dois contra uma. Por causa das regras, a colega com vagina tinha mais tempo de antena, pois cabia-lhe a crítica da tese. Mesmo no final da intervenção, atirou-se à aluna criticando-a por fazer sucessivas referências ao “Homem”. Nos tempos modernos que atravessamos, que não se compadecem com tacanhos padecimentos da desigualdade dos sexos, não se admite a utilização de “Homem” em discurso académico. Mais ainda quando a autora é, ela mesma, uma mulher. Tirou da cartola a lição de sapiência politicamente correcta: não é “Homem”, é “ser humano” ou “humanidade”.
Deve ser trauma. Ou a importação de um modismo do discurso académico anglo-saxónico que se esforça em combater as desigualdades entre sexos. Depende dos ramos das ciências sociais, pois nem toda a literatura conseguiu atingir este elevado grau civilizacional que se insinua nos textos que, para não melindrarem consciências, são nutridos em exemplos que liquidam as diferenças de sexos. Quando exemplificam algo que obriga a associação a um sujeito, os textos da “vanguarda académica” usam fórmulas como “he/she” ou “his/her”. Em alguns casos, dando o braço a torcer aos maravilhosos parâmetros da discriminação positiva, o masculino soçobra perante o feminino – e nos exemplos aparece apenas “she” ou “her”.
Quando a colega do júri lamentava, com umas pétalas de superioridade moral, que a aluna ainda estivesse nas trevas do discurso académico e estendeu a lição aos varonis membros do júri, apeteceu-me lembrá-la de uma incongruência do modismo feminista que meteu lança no tal discurso académico. É que humanidade em inglês diz-se “mankind”. Uma palavra composta – “man” mais “kind”, o que, traduzido à letra, daria “espécie do homem”. Em que ficamos? Importamos do discurso académico anglo-saxónico o código semântico, mas ignoramos o léxico inglês? Daqui fica uma sugestão para alimentar o verão tórrido das feministas exaltadas: refaça-se o léxico inglês. É inadmissível que o discurso académico já tenha incorporado os ditames politicamente correctos da igualdade de sexos e o léxico ainda esteja três passos atrás. Uma língua só é viva se for capaz de se adaptar ao andamento dos tempos. “Mankind” é uma exibição da atrofiada superioridade masculina de antanho, código genético de uma humanidade atrasada.
Regresso ao início do raciocínio. É divertido ver gente que se ufana de estar três passos à frente da atrasada maralha – e que, nessa condição, contribui para o avanço da humanidade repetindo as lições de moral que forem precisas. Gente que denuncia os outros por continuarem mergulhados em preconceitos que, mesmo sem darem conta disso, prolongam a desigualdade de sexos. É divertido vê-los, tão modernaços, tão convencidos que os preconceitos pertencem aos que denunciam. E depois vê-los afocinhar estrondosamente em preconceitos de sinal contrário. É que mudar as convenções da linguagem em função das necessidades de uma causa que se defende tão a peito é um preconceito. É a própria semântica que deve sucumbir perante as conveniências da causa feminista. Ora isto tresanda a preconceito (para não dizer a cegueira).
Se estes preceitos que adulteram as convenções da língua vingarem, quando um grupo for composto por “n” mulheres e um só homem proíba-se a utilização do género masculino que logo contamina o grupo com duas máculas: uma, a perpetuação da dominação máscula; a outra, a antidemocrática desonra, pois não é aceitável que o género em minoria seja o denominador comum daquele grupo. Os linguistas, filólogos e autores de prontuários que estejam atentos à espada de Dâmocles das feministas, não vá pesar sobre eles o opróbrio da tacanha desigualdade de sexos.
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