5.8.10

A pegajosa aderência à realidade


In http://quimicadosperfumes.com.sapo.pt/musgo.jpg
Teimoso, ou apenas com uma tremenda necessidade de se certificar da superioridade do seu pensamento? É que da forma que pastoreia as certezas, dir-se-ia que não é assaltado por dúvidas existenciais. Tem tudo muito bem arrumado dentro da cabeça. Como o invejo.
Contudo, cheira-me a esturro a assertividade a que puxa galões. A esturro, ou a alguma incapacidade para se auto-interrogar num determinado momento da existência. Tem que se admitir: é desarmante a simplicidade com que projecta o que o rodeia. Cerceadas as dúvidas, apenas sobra a clareza das coisas que se arrumam na dicotomia entre o que é bom e o resto, subordinado pela sua inferioridade a prestar a exigível vassalagem ao padrão entronizado.
Se me deitasse a adivinhar os processos internos de composição deste pensamento, diria que as coisas seguem esta ordem. Sobressai a necessidade de eleger um campeão, ou um herói, do que quer que seja. Predomina, como imperativo da colocação perante a existência, um herói de serviço. (Faltaria saber, nesta imaginária deambulação pelos interstícios do pensamento alheio, se a entronização de um herói corresponde a uma imagem projectada do indivíduo – como se o herói de serviço fosse a personalização de si mesmo. Mas, nessa altura, a projecção das suas próprias fragilidades, na incapacidade para ser o que o herói idealizado cumpre na sua função.) O herói pode ser uma pessoa, um objecto, uma causa. Goza desta faculdade de transmaterialização.
A partir do primeiro passo, o processo de afunilamento da realidade prossegue a sua marcha. Quanto mais contacto toma com o objecto heroificado, mais cresce a pressa em o divinizar. Ou seria a admissão do fracassado diagnóstico, e dar o braço a torcer é que nunca. Pode até o subconsciente enviar uns flashes de lucidez, com interrogações pertinentes – “olha que talvez isso não seja o supra-sumo que pensas” –, que a urgência em deificar heróis mata à nascença os lampejos de lucidez.
Delimitado o objecto em glorificação, começa o estreitamento das paredes da suposta realidade. Os objectos rivais são depurados em toda a sua inferioridade. As comparações entram em cena, com metódica identificação das fragilidades dos objectos humilhados no cotejo com o objecto a caminho da deificação. Este processo cumpre a exaltação do objecto heroificado. Num método, porém, que expõe as suas próprias fragilidades: a eleição do objecto que há-de ser deificado depende da demonstração das fraquezas dos objectos rivais. Outra vez em infantil purgação do mundo em redor, pois raras vezes o mundo se entretece numa simplificada imagem dicotómica.
À passagem do tempo, cresce o imperativo do encómio desse objecto. O que passa pelo contraponto do desmerecimento, da humilhação se necessário for, dos objectos que se perfilam em rivalidade. A ira que toma o seu lugar, muitas vezes misturada com acessos de infantilidade que revisitam a pueril demanda, obscurece o entendimento. Convocam-se argumentos sem verificar se as fontes são fidedignas. Como só servem os argumentos que se põem a jeito para reforçar a militância, aumenta a frequência da desonestidade intelectual (que, todavia, algumas vezes se confunde com a exacerbada defesa da causa, já na total perturbação do discernimento). É quando o pensamento descola das paredes que permitem o contacto com a realidade. Reina o mundo inteiro da fantasia. Uma ilusão tremenda povoa o interior do pensamento.
A entronização acérrima dos objectos completa o desligamento do mundo em redor. É quando a aderência à realidade se torna viscosa, as paredes musgosas a impedirem o contacto. O seu particular mundo remete-se à inércia do pensamento que cristalizou um mundo à medida das obstinações que o jogam contra o resto do mundo.
(Em Santa Eulália)

1 comentário:

Anónimo disse...

bom comeco