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Digo, os nossos arqueológicos comunas, ainda embebidos na ortodoxia da saudade soviética, que os há a rodos por aí muito assertivos da sua ideologia. Que é uma espécie de religião. Como nas religiões, ai de quem puser em causa os dogmas. Os dogmas têm essa objectividade inatacável aos olhos de quem os professa. As verdades certeiras da linha do pensamento não os dispensam. Senão as verdades começam a ser ofuscadas por sombras temíveis.
O filme “O caso Farewell”, do realizador francês Christian Carion, narra uma história de espionagem entre a União Soviética, a França e os Estados Unidos passada em 1981. Tudo começa com um general soviético, magistralmente interpretado por Emir Kusturica, colocado num alto lugar e com acesso a documentação sensível. O general fartou-se da esclerose do regime comunista e contactou os serviços secretos franceses para passar essa documentação para o ocidente. O interlocutor é um engenheiro francês a trabalhar na delegação da Thomson Reuters em Moscovo. A pessoa mais insuspeita, porque nunca terá sonhado ser, ainda que inadvertidamente, um espião. Nem à asfixiante máquina dos serviços secretos soviéticos ocorreu que o irrelevante engenheiro seria o interlocutor da traição do general soviético.
Pacientemente, a informação passada desmantelou a imensa rede de espionagem que a URSS montara por dentro dos países ocidentais. Até que uma sucessão de coincidências leva à descoberta da trama. O engenheiro francês e família conseguem fugir a tempo. O general foi preso, torturado e executado junto ao lago onde passava as férias com a família.
Desconfio que os aduladores do comunismo não se hão-de incomodar em ver este filme. Se alguns deles se derem ao sacrifício, adivinho a urgência em desmontar a narrativa atribuindo-a à perseguição que ainda se faz ao comunismo. Dirão que tudo isto faz parte de uma tenebrosa conspiração para continuar o trabalho começado quando o traidor camarada Gorbatchev teve a insensatez de pensar a perestroika.
Os sinais exteriorizados pelo filme – o clima de terror psicológico pela permanente suspeição de que todos espiavam todos e que qualquer um podia ser denunciado por desvios aos padrões aceitáveis, as purgas de quem fosse considerado traidor, as execuções quase sumárias – são um retrato, dirão os nosso comunas, de um delírio que contaminou a mente do argumentista. Era tudo ao contrário: um paraíso, com infinita justiça social, liberdades a rodos, uma harmonia invejável que trazia consigo a felicidade genuína que no ocidente é corrompida pelo capitalismo.
Entendo o enfado dos comunistas indígenas se lhes entrar pelos olhos “O caso Farewell”. Bater nos mortos é aviltante. E se a primeira frase que surge no ecrã é uma advertência de que o filme romanceia a partir de factos verídicos, só por uma macabra curiosidade histórica (ou, diriam os nossos inflamados comunistas, por revisionismo histórico – modalidade em que, aliás, são pródigos) interessa vasculhar no passado para percebermos como o império comunista se começou a esboroar. Terá sido por dentro que o regime se corroeu, pelo desgaste causado pela sua própria erosão, na exaustão das liberdades em nome de uma causa a cada passo mais subjectiva e difícil de suportar. É compreensível que os comunistas caseiros acusem o filme de pertencer a uma disparatada teoria conspirativa. Que digam que a narrativa distorce os factos. Quando os dogmas são hipotecados, aos alicerces da metafísica só pode acontecer uma de duas coisas: ou implodem, ou se reforçam pelo estado de negação.
Mas, repito, é feio bater nos mortos. Daí a minha solidariedade com os comunas locais. Talvez percebem agora como é disparatada a retórica cansativa de quem ainda luta contra um “fascismo” que morreu há trinta e seis anos. Ou só os outros – os que se entretêm a fazer história filmada à custa do funeral do comunismo – é que ainda combatem moinhos de vento?
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