18.8.10

Esta crisálida não mortal


In http://lh4.ggpht.com/_W_zwGFMzwlI/SokNR1TDjmI/AAAAAAAA4ik/JhlESNog_ok/fada.jpg
Não sei. Talvez seja apenas pudor de abrir às palavras públicas os sentimentos que povoam as veias. No catálogo das palavras proibidas em forma de escrita, amor. Talvez, talvez apenas, desamor embebido na maior das privacidades (do amor).
Já está. A palavra pronunciada. Há poetas que fazem gala em compor estrofes épicas, outras condoídas. Depende da sorte que os acompanha ou da desdita que encima as abortadas tentativas de trovar o verbo, de o sentir e de encontrar os complicados caminhos da correspondência. Poetas que não acertam a agulha, as cobiçadas amadas em perene desdém das suas destravadas pessoas. Alguns dizem que são estes padecimentos que apuram o sentido poético, como se fosse a decantação que purifica um néctar vínico. Por isso insistem que o cálice que lhes é dado a provar é uma cicuta necessária. Os inditosos ensaiam preces lacrimejantes, convocando a comiseração alheia. Pode ser que uma leitora se condoa – uma leitora amordaçada pelos mesmos padecimentos, ou uma fulgurante deusa que se encante com os gorjeios lamentosos e, num assomo de generosidade, por ele se enfeitice. E essa leitora faça a síntese do horizonte das necessidades sentimentais de um poeta que deixara de ser prometido fracassado amante.
Uns lampejos que quebram a monótona assepsia do desamor. Umas lancinantes decepções amiúde que se traduzem no fel de um monástico isolamento. Quando por vezes irrompe do frio da noite um sobressalto que destrói as plúmbeas nuvens que teimavam em cobrir o horizonte, harpeja uma melodiosa, frenética irrisão da existência pretérita. O poeta, macerado pelos tantos anos de solidão, desconfia. É como se estivesse diante de uma crisálida fulgurante, encantado pelas formas exóticas e pelo aroma anestesiante, mas sempre com os dois pés metodicamente à distância. Sabe que fora mordido pelas serpentes venenosas do desamor vezes sem conta. Sabe que as serpentes se desprendiam das crisálidas resplandecentes que logo se transformavam numa cadavérica, seca flor.
É um dilema que caldeia a lucidez. As já tantas vezes que saíra condoído não dispunham o corpo para a espontaneidade dos sentimentos. Tudo era filtrado, decantado até à mais irrisória molécula. Sentia-se prisioneiro da ditadura meticulosa que os achaques transitados fermentaram. Queria tocar na crisálida, percorrer-lhe todas as reentrâncias de exotismo, aproximar o nariz para de perto provar o aroma extasiante, sair de si e entregar-se à voragem dos impulsos que retiram lucidez à coreografia do amor. Sair de si e entregar-se a alguém. A racionalidade do tamanho do mundo era o paredão de uma enorme barragem onde as pulsões eram domadas. Os medos de antanho sobrepunham-se em forma de maestrina da danada racionalidade. Ele era o seu próprio fautor de platonismo. Os espartilhos da própria existência preveniam a entrega de si a alguém. Temia deixar de ser quem sempre fora – mesmo que essa não fosse credencial que deixasse um rasto de orgulho.
Ensimesmado, pretendia ser de si o seu próprio amante. Ninguém mais do que ele conseguia arrebanhar tamanho amor. Deitara-se no corrosivo colo de um erro fatal. O ensimesmamento destruía a capacidade de se projectar no exterior de si. A imagem da crisálida, de uma crisálida todavia não mortal, sugeria-lhe escondidos fantasmas a adejar por de cima da crisálida, deliciosa e pérfida, diante de si. Algum dia haveria uma crisálida não mortal, uma crisálida em dessemelhança com as demais em que se empenhara, das outras que se verteram em metamorfose de uma letal, venenosa serpente.
Os higiénicos labirínticos de tão metódica mente insistam na repetibilidade das coisas. Era a maior das emboscadas em que se diluía. As ameias tão altas de um invisível castelo, a levedura do ensimesmar que o levara a um doentio narcisismo de isolamento. 

Sem comentários: