31.12.10

Palavras chacais

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(...) Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar (...).
Mário de Cesariny, “You are welcome to Elsinore”, in Pena Capital
Um intenso paradoxo, as palavras. Enfeitadas pelas pétalas do encantamento, ungidas pelos dedos acetinados com a cor dos afectos. Ora as mesmas palavras que são ditas e despidas de significado, como se fossem o ar que existe num espaço selado pelo hermetismo das coisas. Palavras que se dizem e depois se desdizem como terramotos que tudo destroem na voracidade dos instantes. Mastins furiosos a morder nas canelas, arrancando os ossos pela raiz. Titubeantes por vezes. Outras vezes, quando a coragem assoma num lampejo, implacáveis. Dolorosas.
Essas palavras são a antítese de preces. São sentenças que deixam um lacre definitivo. Entram na carne como metal fundente, numa comoção insuportável. Dizemo-las com um impressionante sabor agridoce. Sabemo-las sofridas e, contudo, sabemos que desatam um sofrimento maior em quem as ouve. Em vez do silêncio, do silêncio que se impunha, as palavras são punhais que esquartejam bem fundo, até às entranhas. E nem os erros aprendidos parecem ser lição alguma. Tudo funciona ao contrário: em vez da economia das palavras, do silêncio depurador, atropelam-se as palavras pródigas que não deviam ser ditas.
Essas palavras que dão voltas e voltas, metidas num remoinho, enquanto o sono espera. Ou as que se esmagam contra o peito quando o sono se interrompe num sobressalto. Ou apenas quando irrompem do nada, a meio de coisa alguma, e ficam com uma perenidade que oxalá o não fosse. Palavras desastradas, vomitadas pelos instintos, fugidas à decantação que era imperativa. Uma enxurrada caótica, como se viessem atamancadas para cima de uma tela onde se deitam à medida que se soltam da boca enraivecida, como chacais esfomeados. Palavras cheias de dor que compõem um quadro enegrecido, as pinceladas desvairadas a quererem saltar dos limites da tela. Como se quisessem atingir os limites habitados por outros.
São palavras calhaus, atiradas sem comiseração numa lapidação em curso. Palavras que magoam, tenham ou não a intenção de magoar. Uma vez ditas, não há perdões que as desdigam. Vagueiam nas carruagens da memória. Demoram-se nos seus sofás como doença teimosa que resiste às medicinas que aplicam derrotadas curas. Palavras que são uma traição assassina. Lâminas aguçadas que entram na carne, sangrando-a com abundância. Os dizeurs dessas palavras são como chacais que vagueiam na planície em demanda das carcaças de animais perecidos, ora consumidos pela doença, ora atacados por uma matilha de leoas devoradoras. Ou são as suas próprias leoas esfaimadas, que cercam o animal moribundo e desferem as dentadas fatais que seccionam a carótida.
E, todavia, o que somos no silêncio das palavras? A venda que as silencia é uma imperturbável censura que aplaca a personalidade que rodopia, febril, nos contrafortes da existência. Eis o maior dos paradoxos:
(...) Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever de falar.
Mário de Cesariny, “You are welcome to Elsinore”, in Pena Capital

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