31.5.11

Eu também fui à “acampada”


In http://farm4.static.flickr.com/3259/5743672735_72a88d54f6.jpg
Prospera, a moda. Pelas grandes cidades de Espanha, um grupo numeroso de jovens (e menos jovens, que o romantismo de outrora nunca se perde de vista) tomou conta da praça central. Montaram uma “acampada”. E protestam. Contra o capitalismo, acima de tudo. E contra os seus filhos: as injustiças sociais, a falsa democracia, a falta de oportunidades que espezinha os jovens, o desemprego (massivo, em Espanha), a comida artificial, a ainda ostracização das mulheres, a miséria, a “América”. Acreditam que estão a fazer novas praças Tahrir – como se achassem que isto é o próximo Egipto.
Nos passeios por Granada passei algumas vezes na “acampada”. Detive-me um tempo para a apreciar. Há muita gente de direita que se insurge contra a ocupação selvagem de um espaço público. Sentem-se incomodados por um espaço público ser tomado de assalto por movimentos que entoam pregões que desfazem de cima baixo os ideais destas direitas. Depois usam o argumento da legalidade para repudiarem a ocupação selvagem: comerciantes e feirantes pagam taxas, e elevadas, por tudo e mais alguma coisa. Por que se isentam estes radicais do pagamento de taxas se estão a ocupar de um lugar público? (E adicionam o argumento da inestética, pois aquilo é um caos montado.)
Tenho a impressão que esta direita incomodada (e, por isso, conservadora) está errada. O folclore muda as feições dos lugares que estamos habituados a olhar com a indiferença das rotinas. O mal da direita conservadora é embalar ao sabor da triste melodia da “autoridade do Estado”. Ela gosta de ser açoitada pelo Estado mandão. O argumento da ocupação selvagem de um espaço público é uma falácia. Se o lugar é público, entregue-se a sua serventia ao folclore que reaviva os lugares empenhados na cansativa rotina.
Não fazia mal a esta direita conservadora empregar uns minutos da sua lufa-lufa diária a apreciar a “acampada”. Se desconfiam que vão ser rotulados pelo vestuário (pois: não usam andrajos nem envergam “rastas” no cabelo, não passeiam falta de higiene, não perfumam a atmosfera com o odor da ganza; e se forem senhoras, não são senhoras – são mulheres –, andam descalças em cima das sujas pedras graníticas, ostentam falta de duche e mostram alguma alergia a soutiens e também atiram para a atmosfera o perfume da ganza), estejam descansados. Sempre que lá fui sentia-me um “corpo estranho” na praça. Não me sentei no chão, como a malta que se ajuntou na “assembleia de vozes”. Mas não notei que algum jovem (ou menos jovem) “acampado” olhasse de soslaio com os modos de quem diz “não és bem-vindo”. Não são eles que destilam preconceitos.
Gostei de outra característica destes jovens em libertação das suas utopias: muitos fazem-se acompanhar de cães. Bem nutridos cães, em contraste com as figuras subnutridas dos companheiros humanos que os passeiam pela trela (ia a dizer “donos”, mas recuei a tempo para não ofender as crenças).
Observei idealismo a rodos. Estão convencidos que praticam democracia genuína – quer os que tomavam conta da “assembleia de vozes”, ditando sentenças sem se aperceberem que eram uma chefia; quer os participantes na assembleia, sentados em redor, colaborando, com a sua anuência, com as sentenças. Notei nos olhos embaciados de emoção de uns já não tão jovens que recordavam idealismos de outros tempos. É uma militância colectiva fervorosa (“o todo é superior à soma das partes” – estava escrito num cartaz, as letras garrafais). E renderam-se às delícias do vil metal: nas bancas de comes e bebes e noutros arremedos de estabelecimento comercial lá estava a placa “tesouraria” (onde se paga pelos serviços e produtos).
(Em Granada, Espanha)

30.5.11

Mezinhas ciganas


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Mergulhado nas ruelas de Granada, a apanhar com trinta graus centígrados no corpo, enquanto uma procissão se preparava para sair à rua e muita gente ansiosa para homenagear uma santa da devoção. Essa gente toda apinhada nas ruelas, junto aos muros das casas, fazendo alas para a banda filarmónica que encimava o cortejo de gente aprumada, eles nos seus fatos e gravatas domingueiros, elas trajando vestidos de lantejoulas e uma estranha bandolete que amparava a franja. A gente apinhada nas ruelas também estava garbosa na indumentária a preceito. Meninas pré-adolescentes pareciam saídas da primeira comunhão nos seus alvos vestidos, segurando uma flor na mão. Esperavam, na companhia dos progenitores, a unção do cortejo beato.
Quando somos forasteiros, a condição denuncia-nos. Andaria lá eu a palmilhar as ruas estreitas partilhando a excitação dos locais por uma procissão se essa fosse a minha cidade. Notei um nervosismo que fervia no ar. Devia ser uma data importante. Já no hotel tirei informações. Afinal era um domingo como outro qualquer, um cortejo com a ostentação dos estandartes das confrarias de adoração a uma santa local que saía à rua depois da missa dominical. Religiosidade em ponto de ebulição.
Andava nisto, com a cabeça apontando ao alto, naquela pose que expõe um forasteiro, quando fui interpelado por uma cigana que trazia nas mãos uma rosa amarela e uma urze. Agarrou-me a mão com tal força que, se me quisesse libertar, tinha de rejeitar a mão dela com um gesto firme. Era o que apetecia fazer, pois pressenti que fosse ler a sina e depois quisesse cobrar honorários. Imerso no agnosticismo que me consome, não acompanho as videntes que se untam com um oráculo e lêem o porvir na palma de uma mão.
Fiz-me de turista e, sentindo o fervor popular na véspera da saída da procissão, estive quieto enquanto a cigana tomava a mão direita e ordenava que segurasse a urze com a outra mão. Balbuciou umas rezas ininteligíveis ao mesmo tempo que a outra mão, a que segurava a rosa amarela, se persignava. Repetiu a ladainha para a outra mão, obrigando-me a trocar a urze para a mão direita. Nessa altura os preconceitos agnósticos vieram ao de cima e dei a entender que queria terminar as mezinhas logo ali. Segurou a mão ainda com mais força e ordenou que estivesse amenizo.
Apurei os sentidos para perceber as rezas que cuspia para cima da mão. Foi em vão. As palavras saíam atropeladas umas nas outras. Uma ladainha que já estava a demorar, subtraindo tempo ao conhecimento da cidade. Com um gesto firme, mostrei enfado. Não sei se o enfado coincidiu com o fim da ladainha, ou se a vidente de rua a antecipou por causa do desconforto do cliente que foi parar às mãos. Foi quando a ouvi, em jeito de sentença de quem decantou uma vida através das rugas enfiadas nas palmas das mãos, duas palavras que seriam sinais excruciantes da pessoal existência: inveja e inteligência (a primeira entoada em tom de advertência, como quem diz “cuidado que há quem tenha muita inveja de ti”).
Inveja e inteligência. Ó fraca vidente, que foste desembestar duas palavras que não quadram com o cliente.
(Em Granada, Espanha)

27.5.11

Os paquistaneses do PS são como os mortos do Benfica


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Às vezes arrependo-me de não passar os olhos nas campanhas eleitorais (já vem de longe o higiénico hábito de desligar dos noticiários da televisão em vésperas de eleições). Dou conta, por portas travessas (as dos jornais), que há momentos hilariantes que mereciam ser testemunhados por uns olhos carentes de circo.
Às vezes, o desespero ateia o tresmalho da perspicácia nos que sentem o tapete fugidio. Procuram redenção numa inventiva tirada, num resgate que inverta a tendência inoportuna. Mas as teias ensarilhadas enredam a lucidez dos tacanhos intérpretes da suposta criatividade. Coitados, nem percebem como caem no ridículo, de como a inventividade e o risível se confundem num só. É quando campeia a aflição dos que se supõem em breve despojados das sinecuras por onde se enfartaram.
Isto que vem a seguir foi lido em jornais, com o amparo de fotografias que documentavam a proeza. A malta socialista organizou comício em Évora com presença do querido líder. Podia lá a praça principal estar meio despida aos olhos dos jornalistas. Não fosse o diabo tecê-las, lembraram-se de encher autocarros com paquistaneses, indianos e moçambicanos que aspiram (mas ainda não tocaram) à nacionalidade lusitana. Houve entrevistas aos exóticos homens que trajavam turbante. E – ó surpresa fatal – os inusitados convidados não sabiam peva da língua maltratada no comício. Já aos moçambicanos era dada a entender a lição de sapiência do querido líder. Mas estes não têm cartão de eleitor, ficou por explicar o que ali foram fazer.
Os olhos dos politólogos de todo o mundo deviam estar virados para a sublime criatividade do aparelho socialista. Deviam aprender que o cosmopolitismo também tem um lugar nas eleições e nas campanhas eleitorais que as precedem. Que interessa que os paquistaneses e os indianos não percebessem uma palavra soletrada no discurso do querido líder? Assim como assim, para a frivolidade política dominada pelo feérico já não conta a substância. Pouco interessa o que dizem os protagonistas quando sobem ao palco. O que conta é o cenário em redor. E se ele fica engalanado por um punhado de homens de turbante e de negros sem direito a voto, que se soltem os aplausos: estes homens não participam nas eleições mas batem palmas, e entusiasmadas, ao que não entendem dito pela boca do querido líder.
É uma injustiça que o PS não possa levar às mesas de voto, e pela trela (de preferência), estes estrangeiros. Deviam ser instruídos para depositarem a cruz na quadrícula à frente daquele partido que ostenta um anacrónico punho fechado (ou uma rosa, ou lá o que é). Abria-se uma época de caça ao imigrante indocumentado, dando-se-lhe direito de voto excepcional. Três coelhos apanhados na mesma cajadada: quem chegasse primeiro aos imigrantes tinha direito de preferência no respectivo voto; lá se abatiam uns valentes pontos percentuais à abstenção que tanto envergonha a muito séria democracia; e seríamos, outra vez, a vanguarda nalguma coisa, com o exemplar cosmopolitismo eleitoral.
Ah socialistas de um raio, que o ambiente de fim de festa tolda-vos o raciocínio. Parecem os do Benfica, zelosos dos seus não-sei-quantos milhões de adeptos, onde até os sepultados em cemitérios e nascituros parecem contar para a estatística.
Ao menos, leguem-nos esta barrigada de riso! 

26.5.11

Desampara a loja (com meiguice)

In http://betoefofs.files.wordpress.com/2010/05/mala.jpg
Com jeitinho, para não doer. Vais ver que, com o jeito amanteigado, as coisas desagradáveis passam por anestésicos.
Há um dia em que a impaciência solta fervura. Um dia com as cores embrulhadas umas nas outras, uma caótica paleta de insuportáveis ruídos, as palavras atropelando-se por causa da voracidade com que são ditas. Os gestos saem envenenados. As manobras, insidiosas como o são as manobras montadas no joelho da perfídia, montam-se num xadrez de latrina.
Enquanto a lucidez anda arredia, podes cantar a opereta desengonçada naqueles lugares onde te amparam a comiseração, ou nos lugares onde é conveniente terçar as mágoas contra a silhueta do diabo em pessoa. Guarda a pessoal coutada onde gravitam, porventura acéfalos, os que abençoam as narrativas sem contraditório. Às malvas o ror de pecadilhos que por aqui coabitam. São meus haveres. Assim como assim, se aprouvesse fertilizar um ego incomensurável que, consta, é o meu, seria devido o sobressalto íntimo pela batelada de malvadezas de que venho acusado.
Já não interessa. Vomita para dentro as aleivosias atiradas para o meu regaço. A bílis interior já me chega, não preciso de ajudantes para condensar essa purulenta substância que azeda a existência. Não percas a embalagem e faz outro favor: mete os pés ao caminho e afina a bússola para o lado oposto. Se quiseres, passo a mão no pêlo, em festinhas indulgentes, só para congraçar feridas por cicatrizar. Dispenso que atires dardos afiados ao dorso, que me não são estranhas as dores do mundo e, em particular, as que vierem assestadas por estratégias congeminadas em surdina.
Vá lá, pisa noutro chão. Não te percas em confabulações estéreis, não vás ganhar calosidades de tanto bater na mesma, encardida tecla. Naquela tecla que há muito deixou de produzir som. Eis um favor em teu proveito: declara-te à decência. Se o não fizeres, a ausente lucidez nem te deixa discernir tristes figuras a reboque. O viço do despeito é o forno que cresta a bondade intrínseca que é teu apanágio. Não queremos que a bondade intrínseca se desaloje e ceda o passo ao seu contrário. Deixa a malvadez por minha conta que – por demais sabido é – já não há remissão de arcanjo algum.
Digo com imenso carinho: deita fora os pincéis e as tintas onde cozinhas essa tela enegrecida. Arranja outra. Não pares de desenhar. Mas começa de uma tela em branco. Com outras tintas, de outras cores mais garridas que sobressaiam das algemas mentais por onde transitas. Arrecada da maresia, e das imensas ajudas que te ajudam à pessoal localização, o fio de prumo. A hibernação no casulo, onde atrás da aparência de tanto arejamento sobejam uns corredores acanhados, é um golpe nessa auto-estima que queremos perenemente luminosa. Não exibas os maus fígados e as inverdades que confundes com fantasias (ou as fantasias que se fundem em inverdades, já nem sei). Coze com fio grosso as alimárias que te consomem. Mergulha-as no sítio fétido onde as alistaste.
E, se não conseguires a sério, ao menos faz de conta que sou uma projecção do imaginário. Eu não existo. 

25.5.11

Manual da melancolia


In http://thebayareanative.files.wordpress.com/2010/05/dsc08075.jpg
Mote: The National, concerto no Coliseu do Porto (23.05.11)
Tristeza em estrofes, mas os acordes em dissonância. Distantes das cores embaciadas das estrofes. Um slogan de promoção ao concerto, numa rádio qualquer, exaltava dor, raiva, melancolia.
As mortificações interiores desbastam versos inflamados. As veias incendiadas pela dor parecem contagiar outra veia, a criativa, através de palavras sentidas que arrebatam os seguidores que algum dia mergulharam nas águas açudadas do desgosto. Faz furor, o estilo. Açambarca seguidores, por revisitação de palcos que soam a agnição. As torturas, quando o são de outrora, soam a esquivança quando as melodias acompanham estrofes condoídas. As lágrimas evocadas pelas palavras entoadas são um sobressalto exterior. Soam a nada, à fungibilidade das cinzas depostas que selam os sedimentos olvidados.
E, no entanto, há uma terrível sedução pela melancolia cantada. Por mais escorada que seja a lucidez, remetendo as nuvens acasteladas dos pesares pretéritos a um nada, os sons que cavalgam palavras impregnadas de mágoa cativam as memórias. Um indeclinável convite a retomar as cinzas da misantropia. As cinzas, alisadas no solo pela ausência de brisa, são desembainhadas à passagem dos pés poltrões que arrastam o corpo suicida para um inútil precipício. Músicas em forma de cianeto, ou o desassossego da sobriedade domada a tanto custo.
Dir-se-ia: não é consentida a discórdia do estilo. Dantes já houve páginas sibiladas pelo punho da dor interior, apimentadas pela ira insubmissa. Ao espreitar por detrás do tempo, é a sobranceria que cauciona o desdém pela melancolia alheia? Quem sabe se, mais à frente, não regressam os dias dos pesares? Nessa altura, haverá paciência para as palavras doídas lavradas em exteriorização da melancolia?
Porventura, direi: o que conta é o hoje que se sente. Desinteresso-me pelo pretérito, renego os pesares cristalizados em forma de palavra, ou os que nunca foram decantados pelos confins da consciência. E desinteresso-me do porvir onde medram incógnitas ferventes. No altaneiro posto do tempo presente, onde se expõe o retiro imarcescível, só vale sorver pela raiz a grandeza dos minutos. Eles desfilam com uma (julgamos) ilegítima voracidade. Seremos suicidas ao ponto de os desprezarmos, ao ponto de sermos carrascos do nosso próprio tempo que desfila debaixo da existência?
As consumições de outrora, quando regressam das reminiscências, adiantam-se em forma de melancolia gravada em palavras ou músicas ou lembranças ou evocações de lugares revisitados. Deviam ser culpadas do torpor que sobressai nos interstícios da inútil melancolia. Quando as forças interiores afinal desmentem o diagnóstico da fortaleza, o corpo sucumbe à convocatória dos pesares. Uma lamúria colectiva, milhares de almas em condoída peregrinação. Se as lágrimas mentais fossem vertidas no recinto, uma inundação tomava conta do lugar.
Pode sempre sobrar a alíquota artística, o feérico espectáculo dos sons e das luzes e do desempenho dos músicos, como se a performance fosse desprovida de matéria sumarenta. Podem muitos interrogar-se: e que interessa esquadrinhar a hermenêutica das palavras entoadas se os sentidos transigem o resto? Talvez devêssemos desconhecer línguas. E, talvez, devêssemos desligar o entendimento como se o artista não arrastasse pelo palco os pesares em forma de estrofe.

24.5.11

Mais do mesmo


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O Público vem perguntando, desde há dias, o que esperam conceituadas personalidades depois das eleições de 5 de Junho. Em tratando-se do caso de não ser uma personalidade, e muito menos conceituado no que quer que seja, faço de conta que a pergunta me chegou à caixa de correio. Fico na dúvida entre estas duas hipóteses.
Hipótese 1: Mais do mesmo
Começo pelo título que as conceituadas personalidades escolhem para encimar a intervenção. “Mais do mesmo” dispensaria mais palavras. O texto ficava enxuto naquelas três palavras, onze caracteres. Tanto banzé para nada. Venha o que vier, haja a improbabilidade, a – há que o dizer sem peias – risível improbabilidade de os mesmos se manterem com o leme nas mãos; ou seja virada a página da consabida “alternância democrática”, que no panorama caseiro determina a ascensão da outra metade do binómio Dupont & Dupont, o que vai mudar? Nada.
Mas agora, que a trindade interventora (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) deixou as duradouras sementes de um programa que (queremos alguns acreditar) será redentor, fermenta a mudança nos interstícios da bruma? Essas sementes deixam marcas duradouras. As mãos e os pés dos que vierem agarrar o leme estão atados aos espinhos do programa redentor da trindade interventora. Invertem-se as lentes e pressagia-se: afinal, algo pode mudar. Mal por mal, ao menos que os que aí vierem estejam com margem limitada. Quem tanto mal pode fazer menos fará se mexer o menos possível nas coisas que contam. Nos dias que correm, não ficar pior é o maior dos feitos.
Hipótese 2: Road to nowhere 
A extrema-esquerda (somatório dos comunistas com a extrema-esquerda caviar) somou inesperados votos. Eles vão ser o fiel da balança. Confirmando o calibre da populaça, o fautor maior da desgraça ensacou a maioria dos votos. Uma maioria indigesta, porém: desta vez, só conseguiu enganar 27%. A extrema-esquerda exulta. Solta-se-lhes o contentamento pelos olhos. Por fim, terão ministérios na mão. Os malditos capitalistas que tiritem de medo, que os impostos vão-lhes aos bolsos em nome da justiça dos desvalidos.
O Prof. Boaventura, entronizado ministro dos negócios estrangeiros, proclamou, já sem a solenidade oficial que fora apanágio do ministério, a suspensão do serviço da dívida “até ver”. Mandou uma comissão, só de peritos da Faculdade de Economia de Coimbra, reavaliar o montante real da dívida. Há que descontar os efeitos da batota feita pelas agências de rating que queriam afundar o notável país numa espiral sem saída.
E o jovem Bernardino, empossado ministro da educação, logo se lembrou de mudar os manuais que doutrinam as criancinhas. Agora o catecismo será diferente. As criancinhas hão-de sair da escola a saber que o mundo pagou com injustiça os escombros do sonho comunista. Aprenderão que a Coreia do Norte é uma democracia vigorosa, invejável, onde se praticam as delícias da liberdade de expressão e toda a gente tira partido de um bem-estar ímpar. E o self made man Vara regressa à governação, mandando nas obras públicas.
E eu digo, se me fosse feita a pergunta dirigida aos notáveis: perante as duas hipóteses, venha o diabo e escolha.

23.5.11

As sentidas mesquinharias


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Há coisas que deixam de interessar por mais afamadas que sejam. Dizemos, amiúde, “quero lá saber” enquanto desviamos o olhar para onde se sitiam as vacuidades do tempo presente.
Que interessam as eleições, ou o modo só aparentemente composto dos que se fazem à sinecura parlamentar, ou os candidatos a candidatos a candidatos a coisa alguma dos aparelhos partidários que protegem o líder das incómodas perguntas de plumitivos não amestrados? Que interessa a crise e a dívida pública e a crise da dívida pública, mais o ajuntamento de peritos estrangeiros que por aí entrou para deixar a crise com um freio? Que interessa se tudo é uma encenação monstruosa, os eleitores de sorriso rasgado convencidos de que contam para alguma coisa se nem sequer curam da respectiva lucidez?
Que interessam as proezas da bola, se a bola é um microcosmos e não, como julgam os excitados adeptos, um retrato em jeito de paradigma? Que interessam os mísseis despejados sobre a Líbia, ou as pedras atiradas na Palestina, ou as diatribes sexuais (para não dizer, na versão condescendente dos acólitos, “pose de sedutor”) do homem que já deixou de ser patrão do FMI? Que interessa a hipocrisia dos negócios e dos seus mandantes, que lhes não interessa o dinheiro salpicado de sangue derramado em conflitos ignóbeis, ou o sangue vertido por crianças exploradas e trabalhadores sem condições decentes? Que interessa a elite angolana e as negociatas? Que interessa o Professor Boaventura mais as suas teorias vesgas, que interessa se ele fantasia que a dívida que temos devia ser comprada pelos angolanos, por esse capital tão recomendável?
Que interessam as manobras de baixa política? Que interessam os golpes baixos, as desonestidades ocultadas e depois, se preciso for, apregoadas como arquétipo de um savoir faire? Que interessam os pacóvios que dizem ámen, estes lorpas comidos sem o saberem enquanto levantam a cancela do voto que perpetua a oligarquia dos de sempre? Que interessa se estes pacóvios protestam e depois insistem no erro, como se de repente, na hora H, se hipnotizassem por uma demência que não guarda explicação? E que interessam os conflitos, os que lemos nas páginas de jornais, ou os pessoais conflitos que se comprometem com a nossa agenda?
Que interessa o aquecimentos global, a pirataria informática, outro vulcão na Islândia, mais outro atentado no Iraque que num estalar de dedos levou setenta vidas, a criminalidade na África do Sul, ou as navalhas escondidas nos bolsos dos pequenos meliantes citadinos, mais a degradação do aljube onde darão com os ossos? O que interessam os cataclismos, a imprensa cor-de-rosa, a extemporânea beatificação de um Papa recente, os rascunhos de um arquitecto da moda, ou um grupo afamado que publicou um disco que é um aborto?
Sobram, e muitas, as interrogações. Não demandam respostas. E não são perguntas de retórica. São apenas interrogações à boca de cena, enquanto o pau vai e volta sobre as costas já encardidas de tantas cicatrizes mal saradas.
Mas há algo que importe, entre este vasto lodaçal acre onde se exala uma pestilenta atmosfera? Os gestos simples, pessoais, impregnados de significado, os gestos e as palavras que se resguardam no anonimato. As recompensas individuais, por mais supérfluas que pareçam. As mãos estendidas que tocam noutras mãos recolhidas – mãos, umas e outras, desejadamente sequiosas. E acordar as manhãs todas. E abrir os olhos, notando que as paredes em redor não são serventuárias de pesadelos negros.

20.5.11

Ao anoitecer, uma história


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Pediste uma história, antes de o sono te levar para longe do conhecimento. Uma história que não viesse nos livros. Querias – podia lá ser? – o embalo das palavras enfeitadas pela criatividade. Podia eu declinar? Não se nega sequer a impossibilidade a uma filha.
Foste célere na entrega aos lençóis. Nem fui eu a descompor a cama. Tu trataste de o fazer com a vivacidade de quem esperava por uma promessa em atraso. E antes que desses tempo para deixar a gravata ao deus-dará, a tua cabeça repousava no travesseiro e os olhos ostentavam um luzimento que foi o nutriente onde desvendei um laivo de imaginação. Os olhos sedentos não se desviavam da minha boca à espera de um amontoado de palavras em forma de historieta infantil.
E elas começaram-se a soltar, ao início ainda perras. A história tinha de encontrar um começo. Era um reino. E a vulgaridade de uma fábula, que as crianças admiram animais falantes, animais em forma de personagens. A rainha era uma girafa. Havia um príncipe feioso, seu filho, que de tão feioso (chamavam-lhe nariz de macaco) era escarnecido pela classe toda. Já não havia respeito pela realeza. O bullying animal com travo republicano aclarava o principezinho girafa a verter lágrimas de tristeza agarrado ao pescoço da rainha. A mãe, pressurosa como todas o são, haveria de tomar uma medida. Assim como assim, ela mandava no reino.
Estavas inerte, boquiaberta, um leve sorriso ao canto dos lábios. Parecias encantada pela narrativa desinspirada. O enredo tinha de prosseguir, estavas à espera dos actos seguintes. Contei-te que a girafa rainha dera ordens ao motorista para a levar à escola. E que apanhou um grosso aguaceiro sacudido por uma trovoada inesperada, despenteando o cabelo tratado nesse dia pela cabeleireira com alvíssaras reais. À chegada à escola, a imponente rainha fez-se anunciar. A directora não queria acreditar. As mãos trémulas acompanharam a também trémula voz na vénia que se impunha. Expôs a razão da visitação sem os salamaleques de protocolo. A directora não estava ao corrente da zombaria sistemática ao principezinho girafa.
Gargalhavas com as vozes que eu ensaiava para as personagens. E com os trejeitos de algumas – a pose senhorial da rainha girafa, a anafada directora da escola com problemas de dicção (o sempre a jeito “sopinha de massa”). Contei-te o epílogo. A rainha tomou as rédeas da turma. Perguntou aos outros meninos por que não largavam de mão o príncipe girafinha. Das catacumbas da sala, com a mão direita tapando a boca para não se saber quem falou, o estroina da turma (um crocodilo com os dentes tortos) balbuciou: “porque é feio como um macaco”. O macaco condoeu-se. O hipopótamo não admitiu as palavras feias do macaco para o crocodilo. O papagaio interpelou o hipopótamo. Nisto, os petizes animais estavam num reboliço, urros e pios de um lado para o outro, o caos instalado. A rainha girafa puxou pelo lustro da autoridade real. Com a sua voz possante, berrou: “silêncio”.
Perguntaste-me pelo fim da história. Abreviei: a rainha girafa discorreu discurso pedagógico, com a letra dourada da potestade real. Prometeu algazarra semanal no castelo onde habitava a casta da monarquia. E lanche a terminar a função, opíparo lanche. A rainha agarrou os insubordinados pelo freio. Jamais houve troça do principezinho girafa.
Bocejavas, talvez farta da narrativa mal amanhada. Essa função estava cumprida: o sono contumaz por fim derrubara os muros. De resto, saí-me mal da função. Que raio de “moral” deslindei para a historieta.

19.5.11

Fora deste filme


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As cortinas que escondem o palco estão encardidas. Cheiram a mofo. Foram muitas as mãos que passaram pelo aveludado das cortinas que já não ostentam a cor vistosa de outrora. No chão, as placas de madeira abriram gretas. Os pregos soltaram-se e as vigas gemem à passagem dos pés. O palco fede a ruínas. Um de nós já deixou de visitar este teatro.
As tonalidades dos dias escurecem com as trovoadas vespertinas que se montam por entre as sôfregas nuvens altaneiras. O sol empalidece, e um de nós prossegue em imarcescível divagação pelos diaporamas de antanho, como se aí houvesse frutos por colher. E, todavia, só o olhar embaciado, ou a falta de lucidez, impede de ver as árvores descarnadas. Como se nos alvores do estio se enxertasse o mais profundo outono que semeia descompostura na folhagem das árvores. As árvores descarnadas são de uma esterilidade impressionante. Já não oferecem frutos por entre a vivacidade da folhagem ausente.
Os dedos untam-se nas memórias que são de uma inutilidade atroz. Houve um dia em que os passos se tornaram ímpares. Sem remissão. E por mais que um de nós quisesse apenas entretecer as curvas de um parêntesis no tempo, era preciso que todos os ventos soprassem para o mesmo lado. O que se montou foi um remoinho que levantou telhados, arrancou árvores pela raiz e embotou os dedos dantes entrelaçados. Há memórias que se redescobrem. As que, um dia, virão resgatadas ao tempo vindouro.
Até lá, as paredes outra vez alvas deviam ensinar uma lição inteira. Não há palavras que se escrevam – povoa-as um silêncio conspícuo. Oxalá um de nós soubesse cumprir a harmonia desse silêncio, estendendo a mão à ausência. Era como se do caos se levantasse outro porvir – o porvir onde as réguas se desemparelhassem de vez e, acto contínuo, os olhos fossem arautos de uma nitidez projectada no único tempo que nos é oferecido num volumoso maço de desconhecimento. As cordas do violino, rompidas, dispensam permuta. O violino estragou-se de vez, não volta a encarniçar as notas atravancadas na clave de sol. Emudeceu. Tal como emudeceram as presenças transformadas em ausências recíprocas.
E, até lá, desmontam-se as páginas de um livro. Elas estavam cerzidas com linha estreita, bela mas frágil. Essas páginas começaram a ter soltura, foram à vida própria. Esboroaram-se as fundações que, percebe-se agora, nunca perderam a fragilidade própria das artificialidades. A implosão foi esplêndida, seguida de perto por voyeurs convidados a preceito. Um de nós ficou soterrado nas memórias desfeitas na poeira ácida. O outro, já anda por diferente, e mais arejado, teatro.
É como se fosse um filme, e fosse possível, por dentro do filme, arrancar personagens que deixam de o ser. Um de nós já deixou de pertencer a este filme. Por mais que o outro teime em arrastar a sua carcaça para dentro da tela, forçando-o a pisar o palco que, de tão apodrecido, só desembaraça o ar fétido em que se encerra. À viva força, contra a força maior da vontade que não se consegue constranger, por essa vontade ser a firme audácia de um porvir deslaçado da poeira ácida que sobrou do edifício arcaico.

18.5.11

A conspiração do sexo (segundo acto)


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A andorinha foi alvejada pela escopeta do Arnaldo. Ele tinha ido à pesca e, à cautela, não fosse a pescaria andar esquiva, levou a escopeta para matar o tédio. E a andorinha, a infausta andorinha, que por ali passava no seu voo de hibernação rumo às terras africanas, pumba, pereceu na ponta de mira da fúria do Arnaldo. Que, é bom que seja revelado, andava de candeias às avessas com o mundo inteiro (ou quase).
O Arnaldo era visita recente do desemprego. Ninguém lhe tirava da ideia que houvera conspiração daquele grupo que almoçava todas as quintas-feiras na tasca adornada por azulejos ribatejanos. Os colegas todos aperaltados (na antítese do Arnaldo, sempre de fato e gravata em perene desarranjo das cores e com atracção pelas nódoas depositadas pelas sobras do almoço), faziam gala em ostracizá-lo. Porque, tinham a certeza, o Arnaldo gozava das preferências do conselho de administração. Eles ensaiavam deitar o Arnaldo numa emboscada. Mal sabia o Arnaldo que ali só estava a face visível do insidioso plano. Os pipis apessoados, gente vistosa mas carente de competência que se visse, juntavam-se todos os dias ao almoço, às escondidas, cozinhando a urdidura.
Enfim, lá trataram do arranjinho, com falsificação de assinaturas que comprometeram o Arnaldo. Os chefes andavam espremidos pelos accionistas. Tinham de fazer dieta aos custos. A porta da rua seria a serventia para os excedentários. Um dia, aterrou um repto em cima das secretárias dos gestores em forma de carta-ultimato: ou apresentavam um plano de despedimentos (falava-se em 30% do pessoal), ou quem lambia primeiro a sobremesa do subsídio de desemprego era o conselho de administração. Foi no dia em que apareceram os documentos falsificados que comprometiam o Arnaldo. Ao fim do dia estava com os haveres à porta, com uma mão à frente e outra atrás, que as acusações eram tão devastadoras que não havia lugar a indemnização.
Os accionistas contavam os tostões e vertiam lágrimas pela abreviação dos lucros. Os outros planos, investimentos noutras paragens, o iate, a remessa para o offshore do costume, a sumptuosa jóia prometida à amante, tudo adiado para segundas núpcias. A desditosa crise soava as trombetas do alarme e ninguém delas se escafedia. Um efeito dominó que por aqui começou e só findou na inofensiva andorinha que jamais aportaria no refúgio da invernia europeia.
Coitado do DSK. Há muitos europeus varados com a armadilha que lhe montaram. As possibilidades são para todos os gostos. Há a versão da inveja partidária, a maldita direita que encenou o ardil para matar uma carreira política. Há a versão “foi a América”, que não aprecia que se salve da bancarrota os mal comportados países que entraram em diarreia orçamental. Ou a mesma “América”, que insiste em mostrar imagens humilhantes de DSK algemado a caminho do tribunal, só para apoucar a França, só para nos certificarmos que a grandeza da França teve os seus dias. E, ai, que isso não se faz, que a gente importante devia ser preservada da humilhação que se destina apenas aos zés-ninguéns apanhados no alçapão da justiça. Um correspondente noticioso em Paris chegou à babugem, desdenhando a vítima da violação: que se descubra quem é, denigra-se a senhora, faça-se culpada de tudo isto.
E a responsabilidade pelos actos, não há quem se interrogue por anda ela?

17.5.11

A conspiração do sexo


In http://2.bp.blogspot.com/-MMy2HIejZgE/TdAawt7Fi3I/AAAAAAAAIns/6ACZTtHfPs8/s400/Dominique-Strauss-Kahn.jpg
Tenho um amigo que, de maneira peculiarmente indulgente para as facadinhas nos matrimónios em que a espécie masculina é pródiga no sítio onde vive, exclama: “as mulheres são o diabo. O diabo!” As hormonas fervem num caldo de excitação e há muitos homens que perdem a cabeça. Ou, se for permitida a escorregadela para linguagem menos apropriada, deixam-se conduzir pela cabeça não pensante.
De vez em quando, caldeiam-se escândalos de sexo com figurões políticos. O escândalo que dá brado é o do patrão do FMI, um sexagenário vaidoso que já andava a fazer contas para ser o próximo presidente da república em França. Era o que anunciavam as sondagens. Se Dominique Strauss-Khan (afectuosamente DSK para os amigos) não tivesse ficado com água na boca ao ver, à saída do duche, uma porventura curvilínea empregada de limpeza dobrada sobre a cama a compor os lençóis, os camaradas socialistas não estavam à beira da apoplexia.
Até ver, DSK não é culpado. A crer na prudência cirúrgica da internacional socialista, os camaradas de DSK dividem-se entre a perplexidade (“ele não pode ter feito semelhante coisa”) e a certeza de que se trata de uma cilada montada pelos adversários.
Eu inclino-me mais para teoria conspirativa. A malta da direita é capaz de tudo. É gente que nasceu com os genes da perfídia. Esses genes foram aformoseados com o desenvolvimento do intelecto. A malvada direita, tiritando de medo com a possibilidade de o Sr. Bruni perder as eleições para o vaidoso DSK, preparou uma armadilha. Consta que DSK se desorienta quando esbarra num rabo de saias. Hoje nas notícias abundavam biografias (ou, dir-se-ia, obituários?) que faziam notar que o patrão do FMI sempre foi conhecido como um “sedutor”. Já Berlusconi, outro marialva da terceira idade que perde o tino quando vê umas raparigas apetitosas, é desprezado pelos piores crimes que são umas orgias com participação de meninas ainda menores de idade (mas já com discernimento para saberem o que fazem). A internacional socialista tem a certeza (porque lhe convém) que os crimes de Berlusconi são piores do que as “actividades” imputadas a DSK. Ele há maneira mais sofisticada de virar o mundo do avesso?
DSK caiu na armadilha dos malévolos direitistas franceses. Estes untaram as mãos da empregada do hotel com avantajadas notas de dólar. Instruíram-na para a insinuação do deboche. Sabiam que as hormonas de DSK falariam mais alto. Nesta altura, os corporativos socialistas pelo mundo fora (menos as feministas convictas, mergulhadas num silêncio comprometedor) interrogam-se: como pôde a empregada entrar no quarto se o famoso DSK estava lá dentro? Cheira a esturro...E mais dirão, para salvar o rosto de um dos seus: DSK foi apanhado a sair do duche, ainda nu. A empregada confundiu-se e, incensada numa fantasia alimentada pelas muitas verdes notas que foram estacionar à sua conta bancária, imaginou o sexagenário a tentar violá-la.
Ora, como é sabido por toda a gente de bem, os socialistas são impolutos. E se, por acaso, DSK foi atraiçoado pelas hormonas galanteadoras? Podia-se extraditá-lo para a terra onde um dos patriarcas da internacional socialista já manifestou estranheza pelo episódio. É que nesta terra há uma dívida de gratidão por DSK ter mandado o FMI emprestar dinheiro a um juro mais generoso do que o empréstimo dos parceiros europeus. E nesta terra há um superavit de juízes que ilibam violadores com a justificação de que elas “estavam mesmo a pedi-las”. Por azar, DSK perdeu o juízo com um rabo arrebitado em cima cama do seu quarto de hotel logo em Nova Iorque. Lá, estas coisas não se perdoam.

16.5.11

O desejo ajuramentado


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Os freios, alados pela educação cheia de peias, embotavam o desejo. Era como se houvesse um patíbulo prometido se as mãos desandassem por caminhos opacos. Ela olhava a medo para os torsos bronzeados de uns bonzos surfistas que passeavam, altaneiros, à saída do mar salta-pocinhas onde fizeram de conta que eram surfistas a sério. Mas ela só os fitava em esgares envergonhados, não fosse um anjo zeloso estar de olho nela para a denunciar às autoridades metafísicas.
Não queria o opróbrio das beatas a cair sobre si. Reprimia o desejo, em luta interminável com as hormonas que segregavam tudo no seu contrário. Quando os calores se despenhavam como cachoeiras abundantes após um dilúvio, não tinha mão nos olhos que perseguiam os exemplares másculos que ostentavam um odor a libido. A dela, a libido por anos a fio coalhada, atamancava-se num espartilho que apertava a carótida dos sentidos. Mas os calores, que deixavam um rasto de suor a escorrer da fronte, denunciavam o estertor que convocava um desenlace diferente dos dogmas obedecidos.
Um dia, farta da castração dos sentidos que vinha das peias da metafísica, entregou-se nos braços de um homem. Diriam as amigas, ainda mais empoeiradas com os sedimentos das sacristias, com o dedo irado a soar a reprovação: “logo o primeiro que te apareceu pela frente”. Já não lhes dava ouvidos. E mesmo que as amigas começassem a olhar de soslaio, reservando um tom de voz distante, ela não queria saber das censuras párias. Soube do zénite da inveja quando uma delas se queixou ao prior da paróquia. Valera-lhe o prior ser um modernaço. Mal soube que andava um pé-de-vento por causa da doidivanas que saíra dos saiotes das freiras atadas às teias de aranha mentais, o prior procurou-a. Consumiu-se em vergonha. O prior sossegou-a: “não dês importância às invejosas.
O encantador homem que a trazia embeiçada não era pródigo em beleza, daquela beleza que arrebata as donzelas quando desfolham revistas onde os famosos desfilam cheios de retoques de maquilhagem ou do milagroso Photoshop. Tinha os músculos firmes, uns braços fortes, um olhar compenetrado que derretia todos os calores que se emproassem. Não era dotado para o falatório. Mas quem queria falatório numa altura destas, na aridez que a descompunha?
A intensidade era tanta que, já sozinha no quarto e imersa na escuridão do que ainda sobrava da noite, nem conseguia evocar as horas anteriores. Depois de se entregar ao lúbrico desejo, cumprindo-se mulher, um sentimento de culpa quase a asfixiava. Eram as sobras da educação religiosa que fermentara a castração do desejo. E por mais que se ajuramentasse ao desejo que dela fizera uma mulher nova (ou, por fim, mulher), não havia maneira de iludir a perplexidade que se cindia na culpa tormentosa.
A mordomia do tempo curou o resto. A espessura dos meses e dos anos derretera os vestígios de culpa. Tornou-se indomável. E se a fama correu com o vento atraindo um séquito de apreciadores, depressa deixou de ser caça e tornou-se caçadora. Nessa altura, já não frequentava os missais.

13.5.11

Solilóquio


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As paredes diante dos olhos são a inércia que aprisiona o pensamento. Não te emprestes à melancolia. Arruína os arrumados esqueletos que se compõem por dentro. Essas ossaturas apodrecidas retêm as impurezas que catalisaram os pesares que te pereciam. A cada passo que os teus dedos remexem nesses esqueletos, avivam-se as mágoas que julgavas sepultadas.
Aproveita os dias soalheiros. Deixa que eles invadam as veias com a sua ledice. Desvia os olhos das imagens que incineram as veias. Deixa os tumultos interiores para os dias em que tempestades a sério forem tuas visitas. Poupa-te para os combates contra ventos enfurecidos que descompõem até os alicerces. Os dias viçosos, esses, merecem homenagens singulares. Senão, regressas às impurezas de outrora, aquelas impurezas que te consumiam por dentro, que tornavam os dias uma escuridão indomável por onde o teu corpo tacteava, incerto.
Olha nos olhos o que te traz recompensas. Abjura o precipício onde o corpo mergulha em seu sofrimento. Não sejas mesquinho ao ponto de te arvorares o teu maior inimigo. Às voltas com as encruzilhadas, atalha por onde o instinto sussurrar ao ouvido. O impasse é o vazio anódino. Uma mortalha que exulta uma aparência vicejante e que, todavia, esconde debaixo da epiderme um veneno letal. Se essa mortalha te abraçar por tempo demorado, ficarás tomado pelo veneno que já não se larga de ti. Os sobressaltos enquistados no pretérito são um ensinamento. Não sucumbas ao assalto suicida de tomar entre mãos os frutos repugnantes, os frutos que escorrem um engodo que aprisiona à letargia.
Os ensinamentos colhidos do outrora são a pedagogia da existência. Chamam-lhe experiência. É falta de lucidez teimar nos tropeções de antanho que desenharam mortificações. É em ti que reside a manha para sair das emboscadas. Daquelas fermentadas por palavras exteriores. E, as piores, daquelas que se avivam em ti e se soerguem derrotando as forças que rejubilam pelas paredes das veias em incandescência. É uma luta desigual – protestas. E nem por aí consegues discernir o bem que te é legado nesta existência. O desassossego tem as suas páginas na agenda, como é dado a toda a gente. Olha por detrás do ombro, em retrospectiva; e diz, em plena justiça, se arregimentas motivos de queixa.
Eis o desafio marcado com o teu sangue: presta homenagem a ti mesmo. Renega os fantasmas sórdidos que esvoaçam no quintal da tua imaginação. Rasga as inseguranças que amarram às perplexidades que te angustiam. Há uma miríade de coisas por ver, palavras por experimentar, descobertas e redescobertas. E já que não marcas compasso com a harmonia intemporal, aprende que isso semeia as pontuais dores que te trazem em solavancos. Um dia pode ser sombrio, tristonho, ainda que por entre os teus maiores esforços não consigas descobrir a causa para o ser. Não te deixes derrotar. A ninguém é dado experimentar todos os dias soalheiros, como se houvesse uma perene primavera a circular por dentro deles. Abdica das imagens pretensiosas e complexas que são anticorpos de um porvir radioso. Empresta-te à simplicidade de tudo. E verás que esse tudo embrulhado numa intrépida simplicidade é o resguardo mesmo à frente dos teus olhos.
Só tens que destruir a miopia do olhar.

12.5.11

A mentira da política (ou a política da mentira?)


In http://pracadobocage.files.wordpress.com/2010/12/mentira.jpg
Os cães de fila atiraram-se a Juncker, o líder dos países da zona euro: organizou uma reunião secreta só para um punhado de ministros das finanças de primeira categoria e depois desmentiu-a. Foi apanhado numa cilada. Um dos confrades presentes confirmou a tramóia. É tramada, e feia, a mentira – ensina-se nas escolas, e nos areópagos da santa moralidade, às criancinhas. Também se lhes ensina que a política é coisa nobre, pois casa-se com a muito estimada democracia. Mas esbarramos em políticos que são mentirosos compulsivos e pomos em causa o catecismo que nos andaram a ensinar quando tínhamos a idade das ilusões.
Às vezes, os mitómanos enredam-se nas teias da retórica. Não mentem; ocultam a verdade. Outros recusam-se a admitir que mentem, atirando-se para os braços da “inverdade”. Ora, uma inverdade não é uma mentira (como é sabido...). É uma mentira pequenina, perdoável. O que foi dito ontem e desdito hoje não conta para o rol das mentiras. Ou porque as palavras são retiradas do contexto (o contexto tem as costas largas). Ou porque as “circunstâncias mudam” – e depois aterram os latinórios dos juristas a conferir autoridade à explicação, esbracejando uma cláusula “rebus sic stantibus” (e, como todos sabemos latim, ou todos fomos confrontados com latim enquanto estudámos direito, ficamos esclarecidos).
Tenho pena dos que dão a cara na política. Não deve ser agradável andar na rua e ver as caras forasteiras a dirigirem um olhar com aquele ar de quem diz para os seus botões “olha o sacana”. Imagino quantos não têm o desprazer de escutar (em surdina, ou em alta voz) observações desagradáveis sobre a sua idoneidade. Não há preço que pague o anonimato. O estigma da mentira pesa sobre os actores que pisam o palco da política. Se a consciência não couber num escaninho da algibeira, não é agradável repousar a cabeça no travesseiro por uma multidão achar que somos distintos mitómanos.
Os petizes que abandonam a idade da inocência dão de caras com a mentira. Aprendem a mentir, pois a mentira é a lei que separa os que ficam para trás dos que vingam no meio da selva. A mentira necessária, ou a pior das mentiras que é a compulsiva, entram na corrente sanguínea. Como a populaça é instruída no convencimento de que os actores da política são gente acima de suspeitas, um escol que merece perenes genuflexões, a populaça aprende com o exemplo que vem de cima. Se é dado aos figurões mentirem com todos os dentes que têm, por que não pode a anónima gente escorregar para uma mentirinha aqui e ali?
Há gente que de tanto morder o freio da mentira, com aquele ar impassível de quem jura pela santa mãezinha que abocanha a verdade, cai no logro dos que não merecem um grama de confiança. Quando abrem a boca e articulam palavras em frases solenes, sabe-se que é nos antípodas daquelas frases que habita a autenticidade. Sobra para memória futura uma legião de seguidores da criatura. Ou são néscios e confiam, com cegueira, em todas as patranhas. Ou sabem das petas mas são tão mentirosos como quem desfia o novelo das mentiras.
E quando a maioria renova a confiança num mentiroso, só temos que temer pela sanidade mental de todos. A começar por essa maioria. 

11.5.11

As proezas pátrias só cabem em seis minutos e quarenta e quatro segundos?


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Anda por aí um vídeo onde ensaiamos – ou alguns que se julgam porta-vozes da portugalidade inteira – uma reprimenda aos finlandeses que vacilam na hora de adiantar o seu quinhão da ajuda a que nos pusemos a jeito. Eu rejubilo com o êxtase pátrio. Que algazarra, ó grandeza pátria! É nestas alturas, ao arremessar uma lição de moralidade de pacotilha aos outros que se julgam moralmente superiores a nós, que desata o orgulho pela portugalidade que vem desde tempos ancestrais.
Anteontem fui a uma escola secundária. Pediram-me para falar da Europa, já que era o dia oficial dela. No fim poucos jovens quiseram fazer perguntas, talvez inibidos, talvez desinteressados pelo assunto. O primeiro a soltar a língua lá trouxe ao auditório o famoso vídeo que esfregámos na cara dos apagados finlandeses. Desafiou-me a explicar que Europa é esta quando o que contam são (ao que parece) as tricas em que se brinca aos “paísezinhos”. Tentei explicar que se trata de manifestações primárias do pior que ainda enxameia a Europa: o nacionalismo obtuso, bacoco e arcaico. Mal andamos quando nos contagiamos pelas excitações estéreis deste nacionalismo datado.
E – mal que pergunte aos excitados com a coisa – somos assim tão grandiosos que as façanhas se condensam em seis minutos e quarenta e quatro segundos de vídeo? E um país a sério, em quantas dezenas de minutos encamisava as proezas? Este corrupio nacionalista, com o “tau-tau” moralista para os néscios finlandeses não andarem por aí a vituperar o nosso “bom nome”, é risível. Como se a nação fosse um corpo onde um povo inteiro arregaça as mangas, o mastodonte erguendo-se para limpar o rosto conspurcado por uns ignóbeis que até desconhecem a sua própria história (alusão ao puxão de orelhas aos hunos por ignorarem que já foram ajudados, e muito, por esta pobretana mas honrada gente quando estiveram com as calças na mão no início do século XX).
Já que os autores, no suposto papel de porta-vozes de uma portugalidade ofendida, tiveram o topete de ensinar história alheia aos finlandeses (que interesse terá o finlandês médio pela enviesada história de Portugal?), convinha que não torcessem os factos. A certa altura, insinuam que sacaneámos os espanhóis quando assinámos o Tratado de Tordesilhas. Mandam dizer os autores do vídeo que “ficámos com a melhor parte” e de seguida ostentam uma fotografia do Brasil.
A bem dizer, isto é toda uma idiossincrasia. Que é como quem diz: escondemos dos espanhóis a existência do Brasil, essa pérola incalculável. Deixámo-los com as sobras. Isto reproduz um padrão de comportamento tão habitual por aí: somos uns grandessíssimos chicos-espertos. Os finlandeses não deviam pôr os olhos na nossa experiência? Só ficavam a ganhar. Se forem chicos-espertos, como tanto nos gabamos de o ser, o mais razoável é fecharem os cordões à bolsa.
Entretanto, dizem-me que da Finlândia alguém respondeu com sentido de humor. Ao menos isso, que (consta) o humor não é atributo abundante naquelas terras maceradas pelo gelo. Esses finlandeses não acusaram o toque e selaram a sua indiferença. Podíamos aprender com eles. De que adianta este campeonato de medalhas nacionais, como se fôssemos machos alfa da tribo a inspeccionar reciprocamente os fálicos adereços só para descobrirmos quem os tem maiores?

10.5.11

As lapas


In http://www.reviewsa2z.com/wp-content/uploads/2011/04/National-Geographic-Channel-Asia.jpg
Mote: olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço
As lapas são um molusco invulgar. Um ecossistema completo. A forma como colonizam um pedaço de rocha é uma lição a reter. Até as adjacências percebem que aquele pedaço de rocha deixou de o ser: nele se enraizou o corpo da lapa colonizadora, sugando os cristais e os musgos numa papa que a alimenta. Nas adjacências, outros fragmentos de rocha e de musgo (apesar de inanimados) refulgem uma ansiedade para a fábula. Há preces aos anjos protectores, para não vir nenhuma lapa trazida pela maré grudar-se-lhes.
Os cientistas sabem que desalojar uma lapa do território onde se enquistam não é dócil empreitada. Exige-se punhal afiado e destreza para subtrair uma lapa ao pedaço de rocha colonizado. E mesmo quando viajam para a frigideira que as vai confeccionar, convencem-se que ainda estão entesadas no pedaço de rocha que se confundira com a sua existência. É a força do hábito. Se pudessem, as lapas enviavam feixes telepáticos para as rochas que foram seu poiso para as avisarem que seriam suas (embora já o não fossem) para a eternidade.
Em dando-se o caso de ser longa a agonia à espera da cozedura, as lapas assobiam a ira e usam a telepatia e outros poderes esotéricos para as rochas que foram poiso continuarem áridas. É tanta a teimosia que já sentem a quentura do refogado e insistem na ideia feita: o locupletado pedaço de rocha não tem vontade própria. Quando o lume soprado pela boca de gás sobe e as cascas cor de pérola começam a estalar pelas entranhas, as lapas entram em delírio. Estão no estertor final, os sucos interiores caindo em cima das finas lâminas de alho que são sua cama mais o azeite em ebulição, o aroma inconfundível a tomar conta, à vez, da cozinha e do resto da casa. E elas, aterradas na inconsciência, a julgarem que são senhoras de quem outrora colonizaram.
Este ecossistema é depredatório. E ingrato. As lapas não admitem que um pedaço de rocha seja ocupado por outras a seguir, depois de serem despojadas do trono que fora seu. Elas, em compensação, retiram-se do pedaço de rocha locupletada quando uma maresia mais intensa se insinua. Com a lentidão do passo de uma tartaruga, descolam os filamentos coriáceos que as unem à rocha que tomaram como sua. Quando já só um filamento as une às rochas, calculam a hora da preia-mar, quando a espuma das ondas se verte em salpicos aleatórios. Aproveitam uma onda altaneira e deixam-se levar pelas sobras da espuma. Outra pedra mais apetitosa hão-de encontrar no caminho. E se acaso a correnteza for demorada, não se entregam ao pânico. É como se a levitação pelas águas enredadas em remoinhos fosse a sua particular hibernação. Darão à costa, algures. E nem interessa que seja longe, pois ao menos as rochas pretéritas não lhes põem os olhos em cima.
O mal é se navegam por dias sem fim, errando pelo oceano fora. E se as correntes se congeminam para a conspiração fatal e desaguam no mar alto, onde a profundeza do leito desaconselha mergulhos mortais. O mais certo é os filamentos que se despegam do corpo se unam a uma corda grossa, já tanta é a miragem que nem percebem que estão emaranhadas nas redes de uma traineira. São despojos inúteis para os pescadores que ambicionam pescado grosso. Nem serventia têm para um petisco. Acabam, esmagadas, entre os detritos da pescaria.