19.5.11

Fora deste filme


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As cortinas que escondem o palco estão encardidas. Cheiram a mofo. Foram muitas as mãos que passaram pelo aveludado das cortinas que já não ostentam a cor vistosa de outrora. No chão, as placas de madeira abriram gretas. Os pregos soltaram-se e as vigas gemem à passagem dos pés. O palco fede a ruínas. Um de nós já deixou de visitar este teatro.
As tonalidades dos dias escurecem com as trovoadas vespertinas que se montam por entre as sôfregas nuvens altaneiras. O sol empalidece, e um de nós prossegue em imarcescível divagação pelos diaporamas de antanho, como se aí houvesse frutos por colher. E, todavia, só o olhar embaciado, ou a falta de lucidez, impede de ver as árvores descarnadas. Como se nos alvores do estio se enxertasse o mais profundo outono que semeia descompostura na folhagem das árvores. As árvores descarnadas são de uma esterilidade impressionante. Já não oferecem frutos por entre a vivacidade da folhagem ausente.
Os dedos untam-se nas memórias que são de uma inutilidade atroz. Houve um dia em que os passos se tornaram ímpares. Sem remissão. E por mais que um de nós quisesse apenas entretecer as curvas de um parêntesis no tempo, era preciso que todos os ventos soprassem para o mesmo lado. O que se montou foi um remoinho que levantou telhados, arrancou árvores pela raiz e embotou os dedos dantes entrelaçados. Há memórias que se redescobrem. As que, um dia, virão resgatadas ao tempo vindouro.
Até lá, as paredes outra vez alvas deviam ensinar uma lição inteira. Não há palavras que se escrevam – povoa-as um silêncio conspícuo. Oxalá um de nós soubesse cumprir a harmonia desse silêncio, estendendo a mão à ausência. Era como se do caos se levantasse outro porvir – o porvir onde as réguas se desemparelhassem de vez e, acto contínuo, os olhos fossem arautos de uma nitidez projectada no único tempo que nos é oferecido num volumoso maço de desconhecimento. As cordas do violino, rompidas, dispensam permuta. O violino estragou-se de vez, não volta a encarniçar as notas atravancadas na clave de sol. Emudeceu. Tal como emudeceram as presenças transformadas em ausências recíprocas.
E, até lá, desmontam-se as páginas de um livro. Elas estavam cerzidas com linha estreita, bela mas frágil. Essas páginas começaram a ter soltura, foram à vida própria. Esboroaram-se as fundações que, percebe-se agora, nunca perderam a fragilidade própria das artificialidades. A implosão foi esplêndida, seguida de perto por voyeurs convidados a preceito. Um de nós ficou soterrado nas memórias desfeitas na poeira ácida. O outro, já anda por diferente, e mais arejado, teatro.
É como se fosse um filme, e fosse possível, por dentro do filme, arrancar personagens que deixam de o ser. Um de nós já deixou de pertencer a este filme. Por mais que o outro teime em arrastar a sua carcaça para dentro da tela, forçando-o a pisar o palco que, de tão apodrecido, só desembaraça o ar fétido em que se encerra. À viva força, contra a força maior da vontade que não se consegue constranger, por essa vontade ser a firme audácia de um porvir deslaçado da poeira ácida que sobrou do edifício arcaico.

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