3.5.11

Muitas camas


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Levava uma vida confundida com uma narrativa de promiscuidade.
(A atestar pelos cânones conservadores – e ele tinha que observar os cânones, por mais que os desprezasse: era o seu meio, tresandava a conservadorismo de sacristia. Ai de quem se desviasse dos preceitos da moral cristã. Era escorraçado para os meios residuais, onde vegetam os dissolutos e os que nem sequer conhecem deus.)
Ao início, quando começou a visitar a vida tresloucada, tentou a discrição. Queria uma vida paralela, obscura, a lascívia a fermentar por todos os poros. A timidez de outrora, caução das miragens de que padecera, revezada pela voragem dos acontecimentos. Uma espiral imparável. De tanto se atravessar na frente de tantas mulheres, a discrição fora denunciada. Amigos, alguma família até, ficaram de queixo caído quando travaram conhecimento com as proezas. Ainda esboçou justificativas. Por mais que, meio a medo, esbracejasse o celibato irremissível, os próceres do conservadorismo de sacristia não se demoviam. Não lhe perdoavam ter destruído meia dúzia de lares.
Trintão, não se comovia com convocatórias de alguns familiares e amigos mais pacientes. Acenavam-lhe com as virtudes da família. Ele tinha que arranjar alguém, alguém que fosse, para “constituir família”. Um amigo mais chegado confessara alguns desvarios pré-matrimoniais. Levou-lhe, como uma pedagogia, a sua experiência pessoal: “o casamento doma os instintos”, disse. Deixara-se daqueles delírios. Com a autoridade de um argumento moralista (o amigo estava convencido), rematou a conversa: “verás que já nem tens idade para saltar de cama em cama”.
Era disso que se tratava. Havia dias seguidos que não metia a chave na porta de casa. Não que houvesse mister de namorada estável; eram noites seguidas a pernoitar em camas diferentes. Em companhia diferente. Às vezes, a meio da manhã, a cabeça teimava uma inclinação a acompanhar as leis da física (por causa de noites claras e das alvoradas precoces) e nem se lembrava da companhia da véspera. E tanto os frontispícios da moral cristã o renegavam ao saberem da profusão de conquistas, como ele acelerava a colecção. Era um duplo prazer. O carnal, acima de tudo. E o da contradição, colidindo contra as vetustas vozes que defendiam a honra dos bons costumes.
Tinha um estatuto – como dizer? – sublime. Junto do sexo feminino, não havia quem o quisesse agrilhoar ao tempo futuro. As histórias corriam céleres. Houve quem o tentasse fazer. Nunca mais se deitaram na mesma cama dele. Como a fama corria, deixava os prazeres irem atrás da fama. Uma roda dentada que se tornara colossal. Das muitas camas visitadas não retinhaa, as mais das vezes, senão remotas lembranças.
Havia dias em que se prometia recolhimento. Não que se deixasse enamorar pelos encantos da família formada, com uma roda de descendentes e visitas frequentes à família da consorte. Guardava em si um anátema qualquer, para o qual não encontrava expiação. Talvez fossem as sobras da educação cristã (de que se divorciara). Ficava inquieto com os remorsos que o assaltavam quando caía no rescaldo do êxtase. Todavia, continuava sem saber (nem conseguir) resistir aos encantos do sexo oposto. E a persistir na visitação de muitas camas. Umas atrás das outras. Assoberbado pelos remorsos indomáveis, soerguia-se um castrador pecado. Sem causa que afivelasse a existência de um pecado.
(E logo ele que, tão senhor das certezas, proclamava a carência do pecado.)

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