9.5.11

Nem que a vaca tussa


In http://praquepensar.files.wordpress.com/2011/03/olhos_vendados.jpg?w=950&h=425&crop=1
Um epitáfio das teimosias todas?
Eram preconceitos. Ou apenas uns olhos embaciados pela menagem solar, vidrados pelas lágrimas que secavam na embocadura das pestanas. As ideias eram todas feitas, pré-fabricadas. Assertivas, as certezas, sobrepunham-se às interrogações despejadas desde todos os pontos cardeais. Os mesmos olhos vidrados resistiam aos ângulos diferentes que se ofereciam. Declinava-os, como aquelas donzelas briosas que não dão o flanco às investidas de atrevidos rapazolas.
Quando os desafios esbarravam com os olhos, uma súbita cegueira. As algemas que se vestiam sobre os espelhos amordaçavam das ambições. Não havia lugar para um pedaço de conhecimento que não pertencesse às páginas amarelecidas. Preferia as rotinas. Os olhos de sempre eram a âncora pretendida pelos curadores das verdades imutáveis. E se vivalma houvesse a atiçar as teimosias sobre as quais repousa a densa poeira, era merecedor de um olhar fulminante e de um raspanete. As escotilhas não se podiam estilhaçar por acção das dúvidas de um punhado de gente que só tinha dúvidas.
Proclamava, pondo a mão no peito, “nem que a vaca tussa”, quando cáfilas andantes ciciando a sua cicuta desembainhavam as máscaras do insondável. Não interessava perceber a linhagem daquelas ideias. Só de as saber nos antípodas das consagradas infalibilidades cultivadas com primor era razão de sobra para lançar os seus mastins. Enervava-se quando os diabretes insistiam nas profecias insolentes que passavam de raspão, arranhando os cromados que alindavam os perenes atributos das inteirezas insofismáveis.
Um dia, foi como se o mundo tivesse acordado do avesso. Os parafusos dos preconceitos mandaram perguntar pela ossatura das exactidões. À volta, só as pedras frias da praça estranhamente vazia (para aquela hora da manhã). Um beleguim donairoso com farpela anacrónica e impecável chapéu do coco despontou do banco do jardim com a loquacidade a que se habituara:
- Não dês corda à tentação. Olha que os diabretes das mentiras apoderam-se de ti se decaíres num momento de fragilidade. Não cedas. Tu tens a linhagem dos escolhidos.
Não era virgem nestas advertências. Das vezes anteriores, quando um singelo arrebatamento apenas ameaçara um desvio da linha cervical, a admoestação sobrara para afugentar os fantasmas que ousaram levitar sobre si. Agora era diferente. Andara dias a fio espartilhado em dois hemisférios que eram o oposto um do outro. Eram de uma simetria matemática – o que mais fermentava o alçapão onde os dilemas pernoitavam. Obrigava-se a repetir (em voz alta quando estava sozinho; ecoando pensamentos quando estava rodeado de gente): “nem que a vaca tussa”. Podia ser que a frase mantivesse os poderes mágicos. Era habitual ter predicados que desanuviavam os olhos da presença dos amaldiçoados malandretes.
Agora tudo se ensaiava na sua diferença. As vozes que pressagiavam o lado obscuro eram entoações mudas, os lábios em amplos movimentos que davam a entender uma vozearia desatada. Os ouvidos, herméticos à gritaria. E os sacerdotes dos hábitos passavam diante dos olhos como se fossem forasteiros (e bem os conhecia de ginjeira). Depois de meia dúzia de dias com a cabeça feita em água, depois de ter esticado as resistências todas à metamorfose, sucumbiu. Já não dizia “nem que a vaca tussa”.
E mal se abriram as portadas que sempre estiveram lacradas, o vento fresco que penteava o rosto era um cicatrizante das feridas que nunca notara. Não era capitulação. Era um promontório de onde avistava a largura da tela.

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