30.5.11

Mezinhas ciganas


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Mergulhado nas ruelas de Granada, a apanhar com trinta graus centígrados no corpo, enquanto uma procissão se preparava para sair à rua e muita gente ansiosa para homenagear uma santa da devoção. Essa gente toda apinhada nas ruelas, junto aos muros das casas, fazendo alas para a banda filarmónica que encimava o cortejo de gente aprumada, eles nos seus fatos e gravatas domingueiros, elas trajando vestidos de lantejoulas e uma estranha bandolete que amparava a franja. A gente apinhada nas ruelas também estava garbosa na indumentária a preceito. Meninas pré-adolescentes pareciam saídas da primeira comunhão nos seus alvos vestidos, segurando uma flor na mão. Esperavam, na companhia dos progenitores, a unção do cortejo beato.
Quando somos forasteiros, a condição denuncia-nos. Andaria lá eu a palmilhar as ruas estreitas partilhando a excitação dos locais por uma procissão se essa fosse a minha cidade. Notei um nervosismo que fervia no ar. Devia ser uma data importante. Já no hotel tirei informações. Afinal era um domingo como outro qualquer, um cortejo com a ostentação dos estandartes das confrarias de adoração a uma santa local que saía à rua depois da missa dominical. Religiosidade em ponto de ebulição.
Andava nisto, com a cabeça apontando ao alto, naquela pose que expõe um forasteiro, quando fui interpelado por uma cigana que trazia nas mãos uma rosa amarela e uma urze. Agarrou-me a mão com tal força que, se me quisesse libertar, tinha de rejeitar a mão dela com um gesto firme. Era o que apetecia fazer, pois pressenti que fosse ler a sina e depois quisesse cobrar honorários. Imerso no agnosticismo que me consome, não acompanho as videntes que se untam com um oráculo e lêem o porvir na palma de uma mão.
Fiz-me de turista e, sentindo o fervor popular na véspera da saída da procissão, estive quieto enquanto a cigana tomava a mão direita e ordenava que segurasse a urze com a outra mão. Balbuciou umas rezas ininteligíveis ao mesmo tempo que a outra mão, a que segurava a rosa amarela, se persignava. Repetiu a ladainha para a outra mão, obrigando-me a trocar a urze para a mão direita. Nessa altura os preconceitos agnósticos vieram ao de cima e dei a entender que queria terminar as mezinhas logo ali. Segurou a mão ainda com mais força e ordenou que estivesse amenizo.
Apurei os sentidos para perceber as rezas que cuspia para cima da mão. Foi em vão. As palavras saíam atropeladas umas nas outras. Uma ladainha que já estava a demorar, subtraindo tempo ao conhecimento da cidade. Com um gesto firme, mostrei enfado. Não sei se o enfado coincidiu com o fim da ladainha, ou se a vidente de rua a antecipou por causa do desconforto do cliente que foi parar às mãos. Foi quando a ouvi, em jeito de sentença de quem decantou uma vida através das rugas enfiadas nas palmas das mãos, duas palavras que seriam sinais excruciantes da pessoal existência: inveja e inteligência (a primeira entoada em tom de advertência, como quem diz “cuidado que há quem tenha muita inveja de ti”).
Inveja e inteligência. Ó fraca vidente, que foste desembestar duas palavras que não quadram com o cliente.
(Em Granada, Espanha)

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