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Mote: olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço
As lapas são um molusco invulgar. Um ecossistema completo. A forma como colonizam um pedaço de rocha é uma lição a reter. Até as adjacências percebem que aquele pedaço de rocha deixou de o ser: nele se enraizou o corpo da lapa colonizadora, sugando os cristais e os musgos numa papa que a alimenta. Nas adjacências, outros fragmentos de rocha e de musgo (apesar de inanimados) refulgem uma ansiedade para a fábula. Há preces aos anjos protectores, para não vir nenhuma lapa trazida pela maré grudar-se-lhes.
Os cientistas sabem que desalojar uma lapa do território onde se enquistam não é dócil empreitada. Exige-se punhal afiado e destreza para subtrair uma lapa ao pedaço de rocha colonizado. E mesmo quando viajam para a frigideira que as vai confeccionar, convencem-se que ainda estão entesadas no pedaço de rocha que se confundira com a sua existência. É a força do hábito. Se pudessem, as lapas enviavam feixes telepáticos para as rochas que foram seu poiso para as avisarem que seriam suas (embora já o não fossem) para a eternidade.
Em dando-se o caso de ser longa a agonia à espera da cozedura, as lapas assobiam a ira e usam a telepatia e outros poderes esotéricos para as rochas que foram poiso continuarem áridas. É tanta a teimosia que já sentem a quentura do refogado e insistem na ideia feita: o locupletado pedaço de rocha não tem vontade própria. Quando o lume soprado pela boca de gás sobe e as cascas cor de pérola começam a estalar pelas entranhas, as lapas entram em delírio. Estão no estertor final, os sucos interiores caindo em cima das finas lâminas de alho que são sua cama mais o azeite em ebulição, o aroma inconfundível a tomar conta, à vez, da cozinha e do resto da casa. E elas, aterradas na inconsciência, a julgarem que são senhoras de quem outrora colonizaram.
Este ecossistema é depredatório. E ingrato. As lapas não admitem que um pedaço de rocha seja ocupado por outras a seguir, depois de serem despojadas do trono que fora seu. Elas, em compensação, retiram-se do pedaço de rocha locupletada quando uma maresia mais intensa se insinua. Com a lentidão do passo de uma tartaruga, descolam os filamentos coriáceos que as unem à rocha que tomaram como sua. Quando já só um filamento as une às rochas, calculam a hora da preia-mar, quando a espuma das ondas se verte em salpicos aleatórios. Aproveitam uma onda altaneira e deixam-se levar pelas sobras da espuma. Outra pedra mais apetitosa hão-de encontrar no caminho. E se acaso a correnteza for demorada, não se entregam ao pânico. É como se a levitação pelas águas enredadas em remoinhos fosse a sua particular hibernação. Darão à costa, algures. E nem interessa que seja longe, pois ao menos as rochas pretéritas não lhes põem os olhos em cima.
O mal é se navegam por dias sem fim, errando pelo oceano fora. E se as correntes se congeminam para a conspiração fatal e desaguam no mar alto, onde a profundeza do leito desaconselha mergulhos mortais. O mais certo é os filamentos que se despegam do corpo se unam a uma corda grossa, já tanta é a miragem que nem percebem que estão emaranhadas nas redes de uma traineira. São despojos inúteis para os pescadores que ambicionam pescado grosso. Nem serventia têm para um petisco. Acabam, esmagadas, entre os detritos da pescaria.
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