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Pediste uma história, antes de o sono te levar para longe do conhecimento. Uma história que não viesse nos livros. Querias – podia lá ser? – o embalo das palavras enfeitadas pela criatividade. Podia eu declinar? Não se nega sequer a impossibilidade a uma filha.
Foste célere na entrega aos lençóis. Nem fui eu a descompor a cama. Tu trataste de o fazer com a vivacidade de quem esperava por uma promessa em atraso. E antes que desses tempo para deixar a gravata ao deus-dará, a tua cabeça repousava no travesseiro e os olhos ostentavam um luzimento que foi o nutriente onde desvendei um laivo de imaginação. Os olhos sedentos não se desviavam da minha boca à espera de um amontoado de palavras em forma de historieta infantil.
E elas começaram-se a soltar, ao início ainda perras. A história tinha de encontrar um começo. Era um reino. E a vulgaridade de uma fábula, que as crianças admiram animais falantes, animais em forma de personagens. A rainha era uma girafa. Havia um príncipe feioso, seu filho, que de tão feioso (chamavam-lhe nariz de macaco) era escarnecido pela classe toda. Já não havia respeito pela realeza. O bullying animal com travo republicano aclarava o principezinho girafa a verter lágrimas de tristeza agarrado ao pescoço da rainha. A mãe, pressurosa como todas o são, haveria de tomar uma medida. Assim como assim, ela mandava no reino.
Estavas inerte, boquiaberta, um leve sorriso ao canto dos lábios. Parecias encantada pela narrativa desinspirada. O enredo tinha de prosseguir, estavas à espera dos actos seguintes. Contei-te que a girafa rainha dera ordens ao motorista para a levar à escola. E que apanhou um grosso aguaceiro sacudido por uma trovoada inesperada, despenteando o cabelo tratado nesse dia pela cabeleireira com alvíssaras reais. À chegada à escola, a imponente rainha fez-se anunciar. A directora não queria acreditar. As mãos trémulas acompanharam a também trémula voz na vénia que se impunha. Expôs a razão da visitação sem os salamaleques de protocolo. A directora não estava ao corrente da zombaria sistemática ao principezinho girafa.
Gargalhavas com as vozes que eu ensaiava para as personagens. E com os trejeitos de algumas – a pose senhorial da rainha girafa, a anafada directora da escola com problemas de dicção (o sempre a jeito “sopinha de massa”). Contei-te o epílogo. A rainha tomou as rédeas da turma. Perguntou aos outros meninos por que não largavam de mão o príncipe girafinha. Das catacumbas da sala, com a mão direita tapando a boca para não se saber quem falou, o estroina da turma (um crocodilo com os dentes tortos) balbuciou: “porque é feio como um macaco”. O macaco condoeu-se. O hipopótamo não admitiu as palavras feias do macaco para o crocodilo. O papagaio interpelou o hipopótamo. Nisto, os petizes animais estavam num reboliço, urros e pios de um lado para o outro, o caos instalado. A rainha girafa puxou pelo lustro da autoridade real. Com a sua voz possante, berrou: “silêncio”.
Perguntaste-me pelo fim da história. Abreviei: a rainha girafa discorreu discurso pedagógico, com a letra dourada da potestade real. Prometeu algazarra semanal no castelo onde habitava a casta da monarquia. E lanche a terminar a função, opíparo lanche. A rainha agarrou os insubordinados pelo freio. Jamais houve troça do principezinho girafa.
Bocejavas, talvez farta da narrativa mal amanhada. Essa função estava cumprida: o sono contumaz por fim derrubara os muros. De resto, saí-me mal da função. Que raio de “moral” deslindei para a historieta.
1 comentário:
As histórias más rematam-se nas palavras. As boas jamais, florescem no mar revolto de cada mente; estendem-se ao (quase) interminável como massa folhada!
O que distingue a qualidade da fábula? É de uma subjectividade total: depende do que cada um consegue "fazer" com ela.
Ressalve-se o esforço do contador em rechear o conto de expressões e vozes vincadas. Pode ser o bastante para abrilhantar o olhar de uma criança. É o que mais importa!
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