30.6.11

Intoxicados


A maresia arpoava os ferrões ácidos na embocadura do cérebro. E depois havia a miríade de luzes que saltitavam, anárquicas, de um lado para o outro, comendo outro bocado do entendimento. Às tantas, desembrulhava-se a capa rubra dos sentidos, onde tudo se desordenava numa harmonia invulgar.

Demorávamos nos lugares, demorávamos os olhares e estendia-se o tempo até à alvorada que irrompia num sobressalto. Às vezes não recuperávamos a lucidez, os vestígios acobertados por um denso nevoeiro que embaciava as recordações avivadas pela frescura do tempo. Sabíamos que o atapetado da inebriação momentânea trazia uma vaga sensação de intemporalidade. Era como se entrássemos na anestesia dos corpos, os gestos autómatos conduzidos pelos dedos de uma entidade insondável. Dizíamos um ao outro que dizíamos coisas que não nos eram dadas a dizer na embriaguez da lucidez. Metíamos conversa com desconhecidos que apareciam. Jurávamos amizades fugazes que se perdiam na poeira em que se depunha a ausência de memória.

Na iridescência nocturna, os passos desarticulados erravam por ruas desconhecidas. As pedras gastas da calçada eram testemunhas solitárias dos delírios incongruentes que assomavam pela fechadura da intoxicação. Todos os delírios eram incongruentes – sussurravam ao ouvido, em perene teimosia que intuía a liquidação da digressão pelas desertas ruas em horas impróprias, uns anjos pretorianos que aconselhavam o recato. Afastávamos com um gesto brusco os anjos que mais nos pareciam demónios, num esquizofrénico gesto de quem imagina seres invisíveis aos olhos dos demais. Não queríamos que eles viessem encerrar num patíbulo as quimeras prometidas pela errância a horas tardias.

Podiam os corpos escorregar nas pedras húmidas das ruelas atamancadas entre o casario lúgubre. Podíamos ser enganados por oportunistas comerciantes que se apropriavam da candura incendiada pela irreparável temulência. Podíamos vegetar na demência dos excessos, acordar imersos num profundo arrependimento das quimeras afinal desencontradas. Podíamos jurar dias diferentes, as juras embelezadas pela esquadria da sagrada decência. Que logo irrompia outra noite que revistava as promessas, decantando toda a sua usura, esvaziando os juramentos a uma pálida, inerme imagem. E os corpos entregavam-se a nova errância, às miragens que impediam um raciocínio de fio a pavio. E o que interessava articular um raciocínio com princípio, meio e fim, se todos os dias, no púlpito da lucidez, o pensamento se demorava em vigílias labirínticas?

Ouvíamos os pesares das vozes conselheiras. Os conselhos de médicos, que acenavam em compungido tom reprovador ao deitarem os olhos nas folhas onde se depunham os resultados das análises ao sangue. Por mais que se içassem os alçapões que seduziam quimeras ininteligíveis, e por mais que regressássemos destas batalhas exangues, com mais um pedaço interior destruído, ferviam as veias de cada vez que adejava a promessa das errâncias nocturnas nos interstícios das intoxicações imagináveis.

Foi um tempo que pertenceu ao conhecimento. Hoje dizemos que ficou um pedaço de nós lá atrás, nessa intemporalidade emoldurada nas margens da intoxicação. Hoje, que a monotonia espreita com os seus remorsos, apetece-nos desligar da (já possível) vetusta era em que medramos. Mergulhar nos delírios incongruentes. Um salto no escuro: se é para experimentar uma luminosidade desconhecida, ou se o salto afivela as saudades do sossego da madurez, os dias vindouros darão resposta.

29.6.11

Salto mortal


In http://dementia.pt/mais-um-mortal-falhado/
O trapézio cintilante, sedutor, segura o vazio que se desprendia nos fundilhos da rede de segurança. Os pés prosseguem, confiantes, como o leão caçador avança na véspera de devorar a presa perseguida. Os olhos irradiam uma resplandecência singular, sem se desviarem por um instante do firmamento que amadurece um rosário de promessas. É como se detrás da cortina baça, da invisível distância a que se coloca o horizonte, estivesse um papel de parede bucólico, impregnado de pequenas flores coloridas.
O abismo sob os pés não trémulos não vacila o passo, que se estuga na desejável velocidade de cruzeiro. O varapau nas mãos afeiçoa o equilíbrio. Estremecem os braços, ondulam ora para um lado, ora para o outro, desembainhando o equilíbrio que fermenta o passo certeiro sobre o trapézio luminoso. Os olhos inspirados na maresia do horizonte que se desdobra em mil promessas não perdem a radiosa expressão. Podem ser miríficas, ou não, essas promessas; é o lado da equação que sobeja incógnita. Mas isso não interessa. Do alto do trapézio, enquanto avançam sem relutância, os pés fincados nas arestas da corda ajuramentam-se na recusa do derribamento.
Só que um demónio contumaz e catatónico azougou a acalmia que nem um esboço de brisa inquietava. Bateu as asas com a fúria própria das almas desarranjadas e investiu contra o remanso do trapézio. As ondas de choque, em jeito de abalo telúrico, fizeram adornar a corda onde repousavam os pés na sua, até então, caminhada certeira. O horizonte diante dos olhos ficou coalhado com os olhares disléxicos. O combate do pés contra as cordas dançantes era desigual, os predicados de equilibrista incapazes de amortecer as ondas de choque que descompunham o sopor do trapézio. As pernas pareciam desconjuntadas. Os pés perderam a sua âncora nas arestas cortantes da corda. O corpo caiu no precipício.
A queda parecia um interminável slow motion. Diante dos olhos passaram: aves pernalta na sua indiferença, pétalas leves exalando um perfume ímpar, retratos de gente anónima (ou não tanto – apenas gente perdida nos escombros da memória), moedas douradas cunhadas com a esfinge de um suserano imaginado, cordas relapsas escapando-se por entre os dedos que as tentavam alcançar em salvação derradeira do degredo. Uma insondável alegria domou os sentidos, domou o pânico colonizador assim que os pés perderam ancoragem na corda que se desprendera do fio do horizonte. Ensaiou uns saltos mortais, cambalhotas avulsas, uma coreografia demente enquanto o corpo se perdia, com uma lentidão que desmentia as leis da física, na voragem do vazio.
Eram instantes, todavia; é que não se desmentem as leis da física. Mais pareciam dias sem fim, dias em que não havia distinção entre a noite brumosa e a luz clara do dia. As piruetas esmeradas embaciavam a claridade em redor, mas os tons plúmbeos eram estranhamente agradáveis, deles soavam melodias que colonizavam os corredores do labiríntico pensamento.
Já convencido do estouraz trambolhão quando o abismo ruísse no seu fundo, acordou sobressaltado, mergulhado num espesso suor exportado do pijama para os lençóis. Os saltos mortais, tarefa impossível, são ofício circense. Ou estão aquartelados nos impenetráveis dédalos dos sonhos.

28.6.11

Never ending story

In http://images03.olx.pt/ui/8/22/62/1279407736_105762062_1-Fotos-de--Cafe-Snack-Bar-de-Esplanada-com-vistas-de-mar-1279407736.jpg
Glosava as parangonas das revistas cor-de-rosa. Ela sabia que ele as tinha como lixo mediático, o bas fond da imprensa. Ela também sabia que ele deplorava a existência das figurinhas que se emprestavam (e emprestavam a sua intimidade) às páginas gelatinosas das revistas. Ao menos não era assunto entre eles, tão diametrais na mundividência. Ele nomeava mentalmente os interesses que gravitavam nas respectivas órbitas. Olhava para a cadeira do lado, onde ela se abstraía do restolho do mundo folheando esta literatura enquanto punha as pernas numa salmoura de sol na esplanada, e notava como tudo neles era antagonismo.
Os pensamentos viajavam para distantes paragens mentais. Ele fechava os olhos e, naquela aparência de quem se extasia com o primeiro sol primaveril, sentia as ondas do pensamento ancoradas a um lugar inacessível, imaginado apenas. Os olhos escorregavam, com a complacência dos óculos de sol, na direcção de um voluptuoso corpo feminino que deslizava em frente da esplanada em aproveitamento do primeiro sol depois da longa invernia. Nessa altura, os pensamentos cristalizavam-se na miragem.
Ela passava os olhos pelos retratos que devassavam, com o consentimento dos visados, a intimidade dos que são visitação frequente das revistas da especialidade. Ao jeito das matronas que afiam a língua enquanto sopesam a vida alheia, coscuvilhava as páginas da revista com uma avidez que, dir-se-ia, era sintoma da pessoal, desinteressante vidinha. As fotografias dos famosos, em generosa partilha do dia-a-dia, era a sua válvula de escape. Os pensamentos também apanhavam um voo de longo curso. Como se houvesse mister de encontrar uma existência paralela, ou de repente gizasse um alter ego que depois segredasse cada minuto da vida resplandecente. Imaginava-se ao lado de um dos habituais figurões em semi-perene estadia nas páginas das revistas que devorava com devoção quase religiosa.
Por mais que estivessem (interesses e pensamentos) em ausente sintonia, a imensa capacidade analítica estéreo em que o sexo feminino é pródigo foi resgatada no exacto momento em que ele, de forma descarada (a crer no diagnóstico dela), desviou o olhar para uma lúbrica mulher que arrastava o andar, vagarosa e indecentemente, em jeito provocatório. Era a fêmea de tal calibre que ele nem teve o cuidado de esconder o olhar destravado atrás das lentes fumadas. Para começo de conversa, recolheu as pernas da salmoura solar e tossiu duas vezes. E como a mulher provocadora notara que ele a seguira com o olhar tão vagaroso como o vagar com que as suas longas e desnudadas pernas se atapetavam no chão da marginal, ela pisou a revista, bateu três vezes com os nós dos dedos em cima da mesa e disparou, viperina: “tanto sol na cabeça deixou-te apatetado com a donzela?
Ainda esboçou retorquir. Reprimiu a resposta a tempo. O sol tão bondoso não convidava a uma arenga. Tomou-lhe o pulso do silêncio após um afectuoso beijo e um olhar com a profundeza dos olhos que a calou. O instante ficou a bater no pensamento nas horas seguintes. Trouxe dos confins da memória um texto sobre a anomalia da monogamia. Deu consigo a pensar. Não eram os interesses nos antípodas que esgotaram tudo neles. Foi a maresia da poliandria, sentir-se imune às dores da poliandria, a torre de Babel inscrita no horizonte do pensamento. Foi a estocada fatal. 

27.6.11

“O medo de não poderes fugir de ti”


In http://farm4.static.flickr.com/3148/2996132444_3630efd41c.jpg
À cabra cega, jogas, insano, com os dados do destino. Com a leviandade própria dos rapazotes em pueril erupção cutânea, como se não tratasses da lucidez necessária aos passos sensatos. E, todavia, interrogas-te sobre o significado da sensatez. Ao de cima vem a medida de subjectividade que embacia as bissectrizes tiradas. Quantas vezes o que hoje parecia sensato vem-se a revelar um desastre quando o futuro encomenda a retrospectiva do tempo?
Às vezes sentes medo do que és, ou daquilo em que te tornaste. Incomodam-te os laivos que admites serem a antítese da tua têmpera. Mas a antítese de ti até pode ser o que julgavas ser a tua essência. O juízo descarrila quando já não sabes os limites das margens sulcadas pelas águas interiores. Às duas por três, as águas transbordam, ocupam os campos em redor, desviam-se do leito que julgaras ter sido feito para essas águas. As águas experimentam o sal de outra terra e desatam-se as interrogações: quais são os terrenos férteis dessas águas? Que nomadismo se acomete na intemporalidade que parece não ter fim?
Andas nisto, assoberbado pelos teus limites. Temeroso de que os limites identificados sejam as algemas que impedem a liberdade de ti mesmo. Sentes que estás dentro de um espartilho, como se tudo dentro de ti quisesse ser mais alto do que é dado a aspirar e um fantasma qualquer adejasse na perene impossibilidade das fronteiras em que esbarras. Fala mais alto a sede do desconhecido, pisar as terras que jamais foram pisadas, deixares que as águas interiores se soltem dos limites que as amordaçavam.
O medo, que traz em sobressalto constante, é a incapacidade de rasgares as fronteiras em que te aquartelas. Um profundo cansaço interior, as masmorras entediantes onde enquistas a monotonia. À noite o sono inquieta-se com um pesadelo: vês-te na rua a fugir da tua sombra, o vulto de ti mesmo empunhando um punhal em pose ameaçadora. Tropeças num passeio, ensaiando a queda de que escapas no derradeiro momento, quando o vulto arremetia para a estocada final. Horas nisto, numa perseguição implacável que não semeia o cansaço da presa e do caçador. És tu a tentar fugir de ti mesmo, do que és, ou daquilo em que te tornaste. E em vez de capitulares, em vez da presa ceder à fadiga (de si mesma), persistes na demanda. Encerrado numa perturbante contradição, empreendes a fuga do eu que te consome mas recusas a captura por um outro eu que se cobiça.
A noite que alimenta o pesadelo parece infindável. Como se tivesse a espessura de dias a eito, no dilema torturante que amordaça a desejada lucidez. O sono sem fim é a prisão onde se jogam os dados do horizonte vindouro. As vozes sussurradas ao ouvido são um coro de palavras ininteligíveis. Ecoam em idiomas diversos, ampliando a confusão que raia os limites da loucura. Consegues delimitar meia dúzia de palavras que se distinguem no meio do caótico matraquear que invade o cérebro: tens é medo de fugir de ti mesmo.

24.6.11

Feios, porcos e maus


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDOtFeRas0D4TA4aVFF4C7SKXlZd1f_iaVhINobdwrJ-5N0PdB2S7irPh5Xe1tfrpED5B1jdNdF9tE1WvTjHq6fIode_4e90Vu-uQ92k6BIsQdtJmjf5YG5YWEqAQT1TduHOv_/s1600/17072010920.jpg
Andavam descalços em casa, os pés encardidos pela sujidade acumulada. Eram descuidados com a roupa de trazer por casa: uns andrajos que deixassem o conforto trautear melodias pelos poros transpirados. Pose negligente quando estavam à mesa, os talheres desordenados ornamentando o almoço confeccionado às três pancadas. Ela coçava o cabelo que não visitava chuveiro há uns dias sem conta. Ele sentara o pé descalço em cima da cadeira e esgadanhava, distraído, uma das unhas sujas enquanto a outra mão molhava uma bucha de pão no azeite temperado com orégãos e alho. Estavam a meio da refeição quando apareceu a prole, os dois rapazes esgrouviados. Um não quis a sopa albardada que já arrefecera.
- Isto está frio, não tem jeito nenhum, grunhiu entre dentes, olhando na direcção oposta à da mãe, sem que, contudo, ela não deixasse de ouvir aquelas sílabas atamancadas.
- Viesses para a mesa a horas que a sopa estava a preceito. Mas se não queres, deixa-a para aí, rematou com desinteresse à mistura.
O filho mais velho chegou à cozinha estremunhado. Fez ligação directa da cama para a mesa onde o esperava outra sopa esfriada com uma mosca a boiar em desespero, acenando os derradeiros movimentos das asas na vã tentativa de se soltar da pegajosa mistela esverdeada. Esfregou os olhos e limpou as mãos à camisola desbotada com as mangas esfiapadas, à camisola que ostentava nódoas de mostarda (o cachorro que a fome devorou antes de se deitar). Aquela mancha negra, ao início indistinta, não motivou comentário. Só quando desentorpeceu é que notou o insecto em decadência a molhar na sopa. Mas a fome era tanta que sacudiu a mosca com os dedos, como se estivesse a jogar carica, e nem pediu substituição do caldo. Tossiu à primeira colherada, protestando:
- Esta sopa não tem ponta de sal.
Ninguém se acusou. A mãe, com aquele ar lunático de quem não parecia afamada actriz, trincava uma maça excessivamente madura enquanto, ao balcão, por entre a imundície da louça de três dias, se entretinha com um exercício de sudoku. O pai desossava a cabeça do coelho estufado, espalhando uma gordura fétida pelos dedos e pelos arredores da boca. Em sentindo comichão no cocuruto, levou uma das mãos engorduradas ao cabelo e despenteou-o, fixando uma melena pastosa. O filho mais novo foi ao caixote onde o gato urinava e pegou uma mão cheia de areia contaminada. Pediu ao pai que chegasse um guardanapo, que o dele tinha vestígios de fuligem. O pai fez-se desentendido enquanto descia a outra mão besuntada até ao dedo do pé com a unha proeminente. O rapaz repetiu o pedido. O pai, contrariado, vociferou:
- O raio do rapaz que não me deixa em paz! Toma lá uma resma de guardanapos. Um estará limpo.
Ao sentar-se, sem olhar para os restos do petisco que laborava em minuciosa função, pegou no crânio quase desossado do coelho e sentiu uma matéria áspera. O rapaz tinha feito um crocante exterior à cabeça do coelho com os vestígios de areia urinada pelo gato. O pai disparou numa correria enfurecida atrás do rapaz, ajuramentando vergastadas bem dadas não fosse dar-se o caso de o petiz ser mais ágil. A mãe interrompeu o reboliço:
- Calem-se e estejam quietos. Não ouviram a campainha? Deve ser a jornalista que vai fazer a reportagem sobre nós para aquela revista, a...a....
A repórter ficou abismada assim que entrou no pardieiro. Como podia gente tão famosa, ela actriz com consagração internacional e ele escritor laureado, exibir tanto desleixo numa revista cor-de-rosa? Quando a jornalista chegou ao escritório com um joelho pisado (cortesia do rapaz mais novo) e a saia estragada por uma nódoa do estufado de coelho, só lhe ocorreu, ao passar os olhos pelas fotografias tiradas, um título para a reportagem: feios, porcos e maus.
Ainda lançou a ideia. O chefe de redacção, sempre paternalista, deu-lhe duas pancadas no ombro e ordenou, com delicadeza, que usasse título compatível com a identidade da revista. Não se destroem ilusões montadas.

23.6.11

Raiva autofágica


In http://eatourbrains.com/EoB/wp-content/uploads/2007/11/anger.gif
Medem-se, as palavras? Tira-se as medidas antes de elas se deslaçarem, irremediáveis, entre os dentes? Às tantas, as palavras são archotes em carne viva que magoam os ouvidos que as escutam. Nessa altura, o mal está todo feito. As palavras desmedidas espalharam-se na carne alheia, incinerando-a com a acidez própria de uma substância química atroz.
A partitura das palavras que assim se entoaram é o cadafalso para onde o corpo é atirado. E por mais que sobrem os pesares, eles esbarram na parede da inutilidade. As recordações obrigam o pensamento a virar-se a montante. A sopesar as palavras ditas e que porventura deveriam ter sido guardadas. A vasculhar nas algibeiras os sedimentos embotados pela macieza do tempo. E a interrogar: se não seriam os sentimentos embotados a fenda por onde espreitaram as palavras que andavam atamancadas no silêncio interior.
Sobra a raiva. Uma raiva que se acomete contra o próprio autor das palavras desapiedadas. Como se quem as proclamou se virasse contra a imoderação do pensamento assoberbado pelas palavras em livre fluência. E se açoitasse, numa autoflagelação sem serventia. Essa raiva autofágica é o altar, o altar que se assemelha perene, onde se depõem os sentidos ininteligentes. De nada serve, a raiva autofágica. Senão para confirmar uma pulsão suicida, a tremenda atracção pelo abismo. É como se os pés desafiassem o precipício numa linha ténue a convocar o desequilíbrio. Os dias todos iguais, a modorra que ensoberbece nas sombras dos dias iguais, desalinha a lucidez.
Passado o tempo da raiva autofágica, despontam os focos da racionalidade. Atiram-se interrogações constantes contra a parede onde se demandam as respostas. E, apesar de muitas interrogações devolverem outras interrogações numa espiral que parece não ter fim, as respostas fermentadas pela intimidada racionalidade fazem o seu caminho. As folhas que assentam no esqueleto da partitura já são outras. Uns pós distantes enfeitam os papéis onde se depõem as respostas. Para o caso, não interessa se as respostas são encomendadas, ou se apenas arpoam uma ilusão que se sedimenta detrás do velhaco manto da raiva autofágica, tentando encobri-lo.
Tudo tem um significado. Nada é vão, nem as palavras entoadas que, lá atrás, maceram a contrição. A coreografia dos impulsos interiores desata os passos, harmoniosos ou destravados, em que se destoam as palavras ditas. Podem ser prenúncios de algo, ou simplesmente a abertura das algemas que amordaçam os movimentos que se decantam em sua liberdade. A raiva autofágica é apenas um ardil que desaprova as palavras entoadas, como se elas não quisessem ser ditas. A raiva autofágica é uma punitiva autocomiseração que se incendeia num beco sem saída.
A tessitura do tempo pode parecer madraça quando ele se escoa na sua aparente lentidão. Mas ele é terapêutico, generoso. As camadas de poeira anestesiam as palavras pungentes de outrora. O que a um tempo só parece malsão, na pusilanimidade das palavras exorbitadas, amansa com a distância dos olhares remetidos ao exigível refrigério. A raiva autofágica, esse punhal suicida que sangra a lucidez, é um terramoto escusado.

22.6.11

A queda de um anjo


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgPgdruHsFnuCKu33klZBSze3QIyqd8pVCmwhyphenhyphenT3KPhZZF1ZQ9Nksh3EdRU6upIVn5n4meb81GXPPItUr4ki6Ev1LDcZk6c7vjR8E9LXJKT78ZKAXBTnOEoWgHzWer-iD0ttqvp/s1600/asa-de-um-anjo-jpg.jpg
Acordou, os olhos ainda entaramelados pela noite mal dormida. Içou o corpo pesado depois de uma dezena de promessas. Arrastou os pés para a micção matinal. Pelo caminho, os olhos esbarraram no pequeno móvel num dos cantos do quarto. O seu retrato estava tombado. Com o rosto virado para a face do móvel. Não estugou o passo, mantendo o arrastamento maquinal dos pés descalços até à casa-de-banho.
Enquanto despejava a urina pelos contrafortes da sanita amarelecida, não saía da cabeça o passe-partout caído com o rosto beijando o castanho enegrecido do móvel. Ele nem era dado aos simbolismos que certas pessoas tratam de pespegar a actos e palavras que rimam com dias e horas, ou com acontecimentos seleccionados. Mas naquela alvorada que soava a contratempo (por causa da insónia e dos pesadelos que enxamearam o sono), a fotografia mental do passe-partout caído escondendo o seu retrato desatara o embaraço.
A certa altura, incomodado pela imagem que teimava em adejar sobre as sombras da memória, tentou sacudir dos pensamentos a alquimia cabalística que se insinuava. Queria lá saber se o retrato tombado no dorso do móvel significava o que quer que fosse. Porventura foi a empregada que faz a limpeza da casa que tocou no passe-partout com o seu anafado cotovelo sem dar conta. Ou foi ele que, nos encontrões denunciando o avançado estado etílico com que chegara a casa na véspera, esbarrou no móvel e derrubou o retrato.
Às duas por três, enxertou-se nesta confusão mental um artigo lido do jornal do dia anterior. Enquanto esperava pelo almoço e matava o tempo passando os olhos pelas notícias, lera que um psicólogo de vanguarda explicava que a tristeza não é maleita. A tristeza é um ingrediente do processo de crescimento das crianças. Nos adultos, açambarca o sentir do seu contrário. A tristeza é imperativa, ou a alegria é despojada de sentido, como se fosse uma concha vazia sem sabor. A nostalgia, se for bem doseada, é uma caução para a felicidade.
Nisto, e em se demorando o pequeno-almoço mercê das efabulações, espetou-se-lhe uma interrogação no córtex cerebral: que causalidade havia entre o seu retrato tombado e a psicológica teoria da profilática nostalgia? Assomou às recordações uma tia esotérica. Até lhe saltavam as córneas se soubesse que ele tinha lido aquela peça de psicologia de algibeira e, na alvorada seguinte, dera de caras com o retrato escondido na penumbra da madeira escurecida. Ela diria: as coisas não são por acaso. As forças do universo congeminam-se nos acasos que só o são para os incautos.
Nem saboreou o pequeno-almoço. As torradas entravam, maquinalmente, pela boca. Não se lembrava se o café com leite estava açucarado. Não sabia se tinha tirado o café expresso no final. A atenção estava locupletada pela lancinante pergunta: o passe-partout caído com o seu retrato ocultado proclamava que ele deixara de contar para a aritmética das almas? Os pensamentos vogaram nisto o dia inteiro. Por mais que recusasse a cientificidade dos esoterismos banais da tia, aquela interrogação ia e vinha, entrava-lhe pelos olhos e buzinava, estridente, aos ouvidos.
Ao deitar, sossegou-se. A fotografia estava como a vira na alvorada. Não vinha mal ao (seu) mundo. Desse ouvidos aos impantes esoterismos e, ao menos, podia dormir sossegado. Caíra – sussurrava, sem se deter –, o retrato deposto. Mas caíra um anjo.

21.6.11

Quando o telefone não toca (2.0)


In http://www.newjerseytelephones.com/images/No%20Phones%20Sym.jpg
Primeiro foram os ministros. A taluda não veio parar às suas mãos. Mantinha a esperança noutra sinecura apetitosa. Secretário de Estado, uma missão qualquer no estrangeiro. Uns dias depois vieram nas páginas dos jornais os nomes dos secretários de Estado. O seu não estava lá. Começou a sentir uma falta de ar própria de quem se meteu com a ansiedade. É que de secretário de Estado para baixo já lhe caíam os parentes à lama.
E o telefone só tocava para dar notícias da gente que menos lhe interessava escutar. Não que desprezasse os amigos, a família, e a muita gente leal que não se cansava de pressagiar um futuro radioso caso tivesse um percentil dos destinos da pátria. Pegava no telefone e convencia-se: “é desta vez, é desta.” Do outro lado estava quem ele não queria ouvir. Alguns interlocutores notavam a tristeza na voz e, aos que eram mais íntimos, desfraldava-se a pergunta, também óbvia: “estás doente?
Quando percebeu que não estava destinada sinecura honrosa, caiu no mapa das ilusões defraudadas. Faziam-lhe uma terrível injustiça. O nome dele viera nos jornais. Até se aproximara do partido que manda no governo, prestando serviços que ajudaram à onda triunfal que cobriu a geografia do país. Alguns dos mais íntimos, que sabiam das expectativas (ou, dir-se-ia, das ambições) cultivadas, e alguns dos habituais seguidores que por ele nutriam uma admiração incondicional (ou, dir-se-ia, teciam para si mesmos uma pequena prebenda caso não ficassem esquecidos no alfobre da ingratidão), advertiram que a aproximação ao partido podia não chegar. Era melhor que esconjurasse a congénita aversão aos partidos. Ser um simples satélite na órbita do partido que ganhasse as eleições podia resultar num tremendo nada. Parecia que adivinhavam.
Os dias seguiam-se e já só havia restolho por distribuir. Esse era para a gente menor, para os aparelhistas que se esgadanham nos corredores onde se jogam as influências ao pé dos figurões. Era uma afronta um lugar de assessor, ou de consultor. Alguns colegas, conhecedores da habilidade para a ciência em que se especializara, diziam que não, que um lugar destes não é desonra. Ele que pensasse bem: os conselheiros peritos num saber qualquer são os pais das políticas. E estes pareceres eram pagos a preço de ouro.
Já não era ao bem-estar material que ia. Os cabelos grisalhos ao espelho agudizavam a ansiedade de todas as manhãs: estava carente de reconhecimento público. Não queria aquele reconhecimento que os seus pares profissionais tributavam. Esse tivera o seu fausto nos anos iniciais. Agora era rotineiro, irrelevante. Pusera a fasquia mais alto. Queria o reconhecimento da pátria inteira. Aparecer nas televisões, um cortejo de jornalistas de microfones e gravadores empunhados à sua frente. Queria andar nas ruas da cidade ao fim-de-semana e ver as pessoas reconhecendo-o com admiração. E por mais que a consorte, contristada com a ideia, vociferasse em pré-apoplexia “não vês que os ministros são desdenhados pela maioria da gente?”, ele estava tão fixado na ideia que nem discernia a realidade debaixo dos seus pés.
Os dias sobrantes e o telefone que teimava em não anunciar a conversa ambicionada desataram uma angústia que o consumia pelas entranhas. Quando encerrou as ambições num quarto escuro, protestou o seu arrependimento. Não cessava de se interrogar, em jeito de autoflagelação: “por que gastei o meu latim com estes ingratos? E por que me dei ao trabalho de votar neles?
Naquele dia, prometeu entregar os seus préstimos aos da oposição.

20.6.11

Não se recusa uma flor oferecida



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Uma sombra, volátil como o são as sombras que se esquivam na penumbra, vem ao teu encontro. Traz ao regaço um singela flor. A flor que desembacia a penumbra, irrompendo fosforescente. A flor caldeia a macerada escuridão de onde te encontras. Ao início, não percebes se estás no limbo que torna indistinguível sono e lucidez. Não percebes se é apenas um fugaz fantasma movendo-se na leveza corporal. Aqueles instantes consomem-se no que parece uma eternidade. A flor embota-se nos olhos do vulto. Dir-se-ia que a flor, em toda a sua iridiscência, se plasmou nos olhos do vulto. Sentes um sobressalto, como se uma brisa repentina deixasse a tua ossatura embebida num esquálido, frágil véu. E sentes: que esse véu desnuda os escombros em que te revelas no contraste com a luminosidade da flor estendida pela mão aveludada do vulto.
Pressentes: que deves recusar a flor oferecida. Afogueado pelos pesares da apreensão, recusas a flor inclinando o rosto lateralmente. O forasteiro que traja de escuro, cindindo-se com a penumbra do momento, continua emudecido. Resiste à erosão do tempo em que se mantém a tua recusa, segurando a flor com a mão estendida. A flor, notas agora, oferece-se na simplicidade da sua nudez. As pétalas ostentam algumas gotas perfumadas pelo orvalho da madrugada. Um par de gotas escorre pelas paredes acetinadas das pétalas esbranquiçadas, deixam um rasto que faz lembrar o sortilégio das lágrimas depostas no rosto de alguém possuído pelo desânimo.
O homem que parece não ter rosto insiste na dádiva. Esboça um gesto delicado com a mão onde repousa a flor, inclinando-a para ti com discrição. Como quem convoca à aceitação da oferenda. E tu, tão emudecido como o vulto, pareces tomado pela inércia. Não te ocorre uma palavra sequer, e todavia há um turbilhão de pensamentos que contamina a apatia. Não esboças mínimo esgar, como se uma súbita paralisia houvesse intumescido as veias por dentro. O vulto, sempre com o largo chapéu escuro com as enormes abas pendidas sobre os olhos, não se demove. Repete a declinação da flor.
Do aluvião de hesitações soergue-se uma interrogação. Queres saber a quem se deve tamanha generosidade. E logo, uma outra perplexidade que apetece pespegar à resposta do homem desconhecido: a que se deve a oferta da flor. Mas continuavas emudecido, como se receasses que o vulto se apoderasse da tua ingenuidade. Como se temesses que aquela flor fosse um logro e assim que nela a tua mão pousasse um mordaz, inodoro, veneno se libertasse. Sabias que não se afigurava motivo para que alguém depositasse em ti uma flor como sacrário da sua gratidão. Não havia memória recente que desatasse os vestígios da tua generosidade. Foi quando sobrou outra dúvida: podia ser que o homem possuidor daquela flor tivesse vindo ao engano. Desemudeceste, por fim:
- A que se deve a flor?
- A nada. Recebe-a. Uma flor nunca se recusa. Não interessa quem a oferece.
Desarmado, estendeste a mão. A flor entrou na tua mão, deixou-a com os vestígios gélidos com que fora dada. Sentiste um frio intenso a subir da mão pelo braço, contagiando-se ao resto do corpo. Como se as raízes do gelo se enquistassem nas veias, deixando-te a tiritar de frio. E depressa aprendeste que esse frio era um bálsamo. Percebeste, então, que não se recusa flor oferecida.

17.6.11

O que se pede à chuva


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Fala à chuva. Fala-lhe, mesmo que o céu esteja ornamentado com um azul fulgurante. Nas preces, não te esqueças de encomendar uma chuva que escorrace mostrengos que se perfilam, teimosos, no horizonte. Encomenda uma chuva caridosa, imorredoira, adocicada. Uma chuva que apeteça apanhar sem receio de te encharcares.
Não te esqueças da chuva. Pode fazer-se bravo o estio, as sequelas do calor apetecível tornando-o extenuante, a rua convidativa, tal como os mergulhos na água temperada, os gelados irrecusáveis, as noites perfumadas com um aroma tropical. Pode ser apetecível a estação estival. E tu, cansado de uma invernia demorada, da chuva que achas sempre excessiva, nem percebes a agonia lenta da estação indolente. Quando destapas o farol do entendimento, sentes falta de um ingrediente ao início ininteligível. Debates-te com a errância do pensamento, que voga nos dispersos que pontuam o azulado céu posto diante da distraída cabeça. Até que te apartas do dilema: sentes falta da chuva.
Aprendes que a chuva lava as sujidades que se depõem nos interstícios do tempo. Elevam-se as bandeiras que emprestam mais cor ao Verão, andam as crianças em berraria no areal, os velhinhos desocupam os agasalhos de lã grossa enquanto se demoram nos bancos do jardim. As fontes, procuradas por turistas descomplexados em dias de canícula, prometem aos indígenas o refrescamento que os pudores conservam em letargia. Os dias, os longos dias em que a claridade se estende num sol a sol vagaroso, desembainham a preguiça dos corpos. Dizemos que as férias esperam a sua serventia, o sossego dos corpos e das mentes extenuadas por um ano sempre mais longo do que parece. E não damos conta que a chuva ausente ungia os equinócios desdobrados em frágeis folhas de papel.
Encomenda as preces à chuva que se retirou. Prepara o chão ressequido para as primeiras gotas grossas depostas por um acastelamento de nuvens. Prepara o olfacto para o êxtase do odor inconfundível da terra molhada pelas primeiras gotas que beijam o solo. Como se fosses um escansão dos odores coreografados numa sinfonia de elementos que te leva a deificar a natureza. Depois, deixa-te ficar, testemunha da intensidade da tormenta que desnuda os rigores invernais num extemporâneo acaso.
Não te olvides de reter as palavras entoadas pela chuva que cai. Decifra os sons da melodia ruidosa que se encavalita na chuva que tomba sobre as árvores e o chão. Abstrai-te do resto. Verás que é como se não houvesse mais sons ao teu redor. Só contam as gotas, ora grossas, ora intimidadas pela fúria do estio interrompido, no seu débito recorrente, emparelhadas com palavras escondidas que te cabe traduzir.
Verás: que a chuva retardada ensina uma lição qualquer. A que tu quiseres embolsar, ou lições ingratas que, contudo, são irrecusáveis. Não enjeites a sinfonia da chuva desatada pela estival intempérie. Imortaliza as suas palavras num retrato e emoldura-o. Quando fores acossado por fantasmas que se soerguem em irregulares episódios, exorciza-os com a bênção das palavras retidas pela vociferação da chuva inóspita. 

16.6.11

Quando o telefone (não) toca


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Tantas horas de ansiedade. As eleições depuseram os poltrões. Era a vez dos correligionários. Aproximava-se a hora da distribuição das prebendas ministeriais pelos mais fieis, os que souberam subir a pulso na estrutura do partido, os que (como ele), não sendo militantes, prestaram aconselhamento pericial e mantinham uma não remota esperança de serem chamados no sempre vistoso papel de “independentes”.
Eram horas de ansiedade. O telefone esvaziava a bateria. Às escondidas, espreitava as notícias televisivas no ecrã do computador, o som quase imperceptível não fossem os colegas entender a produtividade lesada pela agonia em vésperas de novo governo. Sabia que havia movimentações, convites daqui para ali, pressões dos lobbies poderosos para que fulano fosse colocado na pasta que interessa. Era uma competição selvática. Os fieis e os aspirantes a uma sinecura mal dormiam. Esperavam que até durante a madrugada o telefone pudesse tocar.
Enquanto o telefone continuava emudecido, alimentava sonhos. Já se via na tomada de posse a entoar a frase protocolar, jurando um desempenho em prol da pátria. Já se imaginava embrulhado em papelada diversa, afogueado pela burocracia típica, a marcar reuniões que emprenhavam a agenda. E já antevia a figura contristada quando chegasse o convite tão esperado. Dirá que é um sacrifício imenso, que até perde réditos se aceitar a sinecura, pedirá uns dias para tratar da vidinha. Esticará a corda por um par de dias antes de responder o que já queria ter respondido no exacto momento em que lhe fora dirigido o convite. Dirá as palavras que ficam tão bem aos prestimosos servidores das causas públicas: que servir o Estado é um indeclinável sacerdócio.
Mas o telefone teimava no emudecimento. Passou um dia, passaram dois, chegou o terceiro. Saltam os primeiros nomes. Ministros e secretários de Estado. Não lhe calhou a taluda ministerial. Mas não desanimou. Fez um reescalonamento das ambições. Director-geral ou assessor de um figurão também caem bem. Com a vantagem de que não têm exposição pública, que isto de governar é uma fogueira que se ateia à credibilidade de quem se empresta à vocação. Laborava nas possíveis prebendas, pondo a carroça à frente dos bois, distraído do resto. Nos tempos mortos, fazia constar, através de insinuações que não se perdiam nas entrelinhas, que estava de saída para o governo.
Ao quarto dia, o telefone tocou. Como tocava dezenas de vezes num dia, entre solicitações profissionais e a conversa com a consorte sobre a intensa vida social do casal ou a iguaria prometida para o jantar. A cada vez que soava o toque polifónico do telemóvel, atendia, célere e ansioso, julgando ser a voz entoando o convite – o tal convite. Ao quarto dia de espera, o telefone tocou o desejo. Era o ministro da tutela apetecida, aquela que quadrava com as suas aptidões, para a qual esboçara planos ambiciosos. Queria o ministro que ele fosse seu assessor principal. Explicou os motivos da escolha. Sem se deter, explicou as funções. Ele nem pestanejou. Agradeceu a deferência e a confiança. Ao contrário dos planos que pertenceram ao onírico, não implorou por tempo para pensar ou para decidir a vida que tinha. Agradeceu e aceitou, com indisfarçável entusiasmo, o convite.
No dia seguinte entrou no ministério. O nariz empinado, todo ele ufano, olhando em redor em demanda de reconhecimento, e pensando com os seus botões: finalmente, era governante. E prometeu que a escalada não terminava aí. Haveria de ir a secretário de Estado. Ou (quem sabe?) a ministro.

15.6.11

A caminho da sedução proibida


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Volto ao assunto: os piropos e assobios, excrescência vomitada por uns primitivos seres masculinos quando, no auge do cio (ou não), ensaiam a atracção de espécimes do sexo oposto. A UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) promoveu um estudo que detectou uma avalancha de casos de assédio sexual. Isto só vai ao sítio – preconiza a UMAR – se todas as formas de assédio passarem para o Código Penal. Perturbador, é a associação meter no mesmo saco “piropos, assobios, roçar ou encostar nos autocarros”.
(Uma sugestão à D. Tatiana Mendes, porta-voz do estudo: devia emprestar algum rigor à linguagem. Com que então os criminosos que entram em efervescência hormonal quando se lhes depara uma mulher curvilínea só escorregam para o crime se se roçarem ou encostarem a ela dentro de autocarros? E nos restantes transportes públicos? E se a actividade criminosa não acontecer nos transportes públicos – se for, por exemplo, na fila para o supermercado, num ajuntamento à porta de um teatro, à saída de um restaurante apinhado?)
Esta fobia feminista atormenta-me. Não ignoro o mau gosto de muitos piropos (já escutei alguns vindos de trolhas que fazem jus ao gabarito intelectual da classe), nem posso dizer que nunca me foi dado a ver um marialva encartado a sibilar, desconchavado, a uma beldade (ou não) que passa. Também fui testemunha de alguns apertos pouco inocentes de anciãos em jovens penduradas nos ferros dos autocarros que evitam as quedas a quem vai de pé. O que me inquieta é tratar a eito piropos e assobios e o contacto físico que acontece quando alguém, sórdido, se roça ou encosta numa mulher. É como se uma agressão e um insulto isolado dessem a mesma dose de cadeia.
Por este andar, qualquer dia proíbe-se a sedução por decreto. Nunca se sabe se a erupção de um piropo, mesmo que seja a uma mulher conhecida, não fermenta uma queixa apresentada na esquadra. Talvez as feministas da UMAR pretendam a extinção do engate – essa coisa tão anacrónica! As pessoas teriam de encontrar um qualquer ponto alfa que, por troca telepática, permitisse descobrir a atracção recíproca. Ninguém se arriscaria a esboçar um convite para jantar, ou um elogio à roupa envergada, ou ao emagrecimento que dita um ar mais saudável, não fossem tais palavras entendidas como rebuscadas formas de piropo. E – quem sabe? – se um cientista criativo seria recompensado por descobrir o silenciamento dos assobios que há em nós. Por este andar, qualquer dia não faltam propostas para a castração dos destemidos que teimarem no piropo e no assobio.
Tenho cá a desconfiança que estas mulheres da UMAR têm um problema de identificação. Tiro daqui os piropos grotescos, que são ofensivos, e retenho aqueles que convocam a verve e a imaginação. Haverá mulher, por assim dizer (sem ninguém ofender), “normal” que não sinta o ego dilatado ao receber um piropo elogioso e imaginativo? Quantos namoros nunca o teriam sido sem o lubrificante do piropo?
Tenho cá outra desconfiança: estas mulheres da UMAR são umas frígidas.

14.6.11

Os marxistas, leninistas, trotskistas & pandilha são bons é na luta greco-romana


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Dava um tratado, e dos longos, a (pobre) semântica dos marxistas, leninistas, trotskistas e companhia. O castiço desfile de sindicalistas, militantes, simpatizantes e gente engajada no festival das revoluções que prometem os amanhãs radiosos é distrate da pobreza semântica.
O que mais me comove é a mobilização para a “luta”. Eles prometem luta contra as injustiças grotescas, habitualmente fomentadas por hediondos capitalistas que espezinham as massas oprimidas. Num cortejo de opressões intermináveis. Os salários são a expressão das iniquidades. Mesmo quando sobem, deviam crescer mais. Vem na cartilha marxista: os capitalistas apropriam-se da força braçal, os seus lucros são determinados pela diligência de quem trabalha. Os lucros deviam ser socializados. A prova do egoísmo dos capitalistas é que eles açambarcam os lucros e só deixam migalhas para os operários. Parafraseando o famoso cantor de intervenção: “eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada”.
A “luta” causa-me fastio. Talvez isto explique as pessoais desavenças com estas cartilhas totalitárias. Sendo totalitárias, chegava para me deixar nos seus antípodas. Mas há esta componente lutadora, bélica por natureza, que desata náuseas irremediáveis. É que sou um antibelicista genético. Não me confundo com os arremedos de pacifismo que às vezes são vicejados pelos abencerragens que militam nestas franjas, que esse pacifismo nasceu enviesado. Quando me ponho a pensar na semântica repetitiva, na promessa de luta contra as terríveis iniquidades promovidas pelo “grande capital”, não me saem da cabeça aqueles dementes que se soltam, desenfreados, rumo a uma peleja, uma peleja qualquer – e que só estão bem a partir cabeças e a deitar os costados numa maca do hospital, à espera de serem suturados por causa de um golpe aberto por uma cadeira escaqueirada na moleirinha.
Falo de cor: agora entendo por que triunfavam nas olimpíadas, na luta greco-romana, os atletas dos países comunistas. O catecismo ideológico estava emprenhado com a palavra “luta”. Entre nós devem vegetar muitos sindicalistas e promitentes aliados das lutas contra todas as injustiças do “sistema” que fariam melhor figura se, nos tempos da áurea juventude, tivessem enveredado pela luta greco-romana.
Deve ser árdua a existência dos camaradas. É como se cada dia fosse uma labuta homérica e intransigente contra as águas que arremetem contra os seus corpos com uma virulência sórdida. A água esbarra-se, cruel, contra os seus rostos que, todavia, não declinam perante a – lá está – luta. A vitória é adquirida. Pode tardar, como tem tardado. A má fortuna recente testemunha o recuo dos fautores das lutas justas contra os síndicos do nefando capital. Não perdem a esperança que outras alvoradas sorrirão, mais radiosas, mais justas. O que depois farão aos capitalistas a rebate, não interessa (que às vezes, a justiça desliza por caminhos esconsos). Algum dia a madrugada despontará com o perfume da prometida justiça social. A rimar com uma sentença do Rui Tavares dos imperativos categóricos:
Mal de mim, que nem assim consigo ser de “esquerda”. 

13.6.11

Homem objecto


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Sentia uma imensa frustração. Uns queixavam-se dos desamores que os atormentavam. Outros nem tanto: apenas destilavam uma salutar inveja por causa do sucesso que conseguia junto do sexo oposto. Mas ele passava pelos dias com o rosto da simulação, como se houvesse garbo na pose de conquistador. Imerso num profundo paradoxo (tinha o que os outros lhe invejavam), não se desligava do íntimo desassossego que o acossava. Não havia garbo algum pela pose de conquistador.
Não tinha como negar: tudo se conjugava para que fosse um homem objecto. Merecia revisão de termos o mito contemporâneo, alimentado por levas de feministas arrevesadas, de que só as mulheres eram tratadas como objectos nas mãos das intumescidas hormonas varonis. Concedia: elas são mais vistosas, e mais procuradas pela excitação descontrolada de machos com o cio. E se houvesse uma versão subtil que se jogasse num tabuleiro com as peças invertidas? E se os homens – alguns homens – decaíssem como homens objecto?
Alguém lhe dissera, reproduzindo palavras alheias, porventura em exclamação de despeito: ele arrebatava as atenções das donzelas por mero proveito de imagem. Um palmo de cara, o corpo atlético, um charme que desarmava. Mas era só isto. E ele, que nunca aspirara à condição de intelectual, ficava condoído ao esbarrar neste cru diagnóstico de si mesmo. A interrogação que adejava, plangente, era esta: seria apenas um papel de embrulho que se oferece ao primeiro contacto? E por detrás do atraente papel de embrulho não haveria predicados com merecimento?
Os anos passavam e as loucuras transactas eram já um ponto de mira afinado em contraposição das acções. O tempo desenvolvera um sentido que se distanciara do epicurismo de outrora. Já não contavam as proezas que enchiam o imaginário alheio e o garbo pessoal, inflamando uma pose sobranceira que não cativava simpatias excepto entre as que caíam no engodo da converseta de afamado conquistador. Agora as madrugadas desatavam um penoso cortejo, que ia pelo dia fora, em que se interrogava se não passava de uma imagem sedutora e, por dentro, a inanidade completa. Era um dilema pungente, logo a ele que tanta espécie causava a frivolidade decantada pelos outros.
Podia dar-se o caso de o diagnóstico que o sobressaltava não tivesse correspondência com os factos. Podia ser um simples arrebatamento impensado do despeito com que se tenta reduzir a nada quem se acha merecedor desse nada. E que fosse. Por cima do despeito a carecer desvalorização, sobrava a interrogação que o torturava: não haveria predicados interiores que fossem ágeis detonadores do encantamento de outrem? Quem lhe dera que a atracção alheia viesse ancorada a uma personalidade adorável, à por tantos escritores deificada “beleza interior”.
Andava acabrunhado com estas dores interiores. Já nem se fazia notar pelos créditos de sedutor. Os dias passavam, anómalos. Como se estivesse numa campânula imune à passagem do tempo. Não são só elas que se jogam no infamante sarcófago em que se atamancam como mulheres-objecto. Há afinal um lugar, por mais remoto que pareça, onde se confinam homens objecto.

10.6.11

As farpas inflamáveis


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A química esconde umas reacções do diabo. Como é possível a compostagem interna dos alimentos terminar numa sequência de reacções que accionam a acumulação de metano nos intestinos? Eu sei, os especialistas em química eram capazes de mandar para cima do papel uma série de equações, ou lá o que é, mostrando como a assimilação da comida desagua na erupção de metano dentro das paredes intestinais. É um sortilégio que dispenso (nesta perspectiva do cientista), todavia.
O mal do metano: é um gás terrivelmente inflamável. Há uns largos anos, numa roda de amigos, o tema veio à baila. Alguém tinha ouvido dizer que os traques emitiam um gás que, para além do óbvio (ser insuportavelmente mal cheiroso e incolor), era incendiável. Quase todos duvidámos; quem contou a historieta tinha a fama de pespegar umas patranhas com aquele ar circunspecto de quem proclama coisa grave. Como um de nós tinha outra fama – a fama da fácil soltura das ventosidades anais –, aventurámo-nos na experiência química. O campeão pôs-se a jeito. Como é habitual, não demorou a exalar as pestilências interiores. Desta vez, à boca de cena (se é que a expressão é autorizada) estava um ansioso isqueiro. E zás, uma labareda de generosas dimensões soltou-se, anunciando (ou, em bom rigor, denunciando) a largada do flato.
Uma consulta à enciclopédia ensina que o metano que se forma depois da digestão da comida é vinte e uma vezes mais danoso para o efeito de estufa do que o monóxido de carbono. Faltava saber, caso se arregimentassem  cientistas interessados no assunto, que quantidade de metano liberta a espécie humana ao fim de um dia. Teríamos de confessar os hábitos flatulentos. E teriam os cientistas de arranjar maneira de capturar os gases expelidos pela extremidade do intestino para medirem a capacidade escoada para a atmosfera.
As farpas combustíveis, que utilidade? – dava uma boa (mas talvez escatológica) tese de doutoramento. Primeiro, deviam as bombas de gasolina ostentar discretos dísticos avisando para o perigo da actividade peidorrenta enquanto se abastece o automóvel. Afinal, a detonação pode ser causada pelas ondas recebidas pelo telemóvel mas também pelo metano em soltura das cavernosas paredes onde se alojara. Segundo, atendendo aos predicados inflamáveis do gás contido nos nossos gases, eles podiam ser aproveitados para combustível que fizesse mover os veículos.
(É só imaginar as petrolíferas a reconverterem o negócio; as empresas que fabricam automóveis a adaptarem os motores às peculiaridades do metano; como seríamos convidados à doação – não gratuita – dos subprodutos acumulados nos intestinos, inventando uma utilidade económica para um merdoso desaproveitamento; porventura, cursos de especialistas no controlo esfincteriano para melhor se libertarem para o invólucro que faz a captura dos gases a mais nas paredes intestinais; ou de como até os gastrónomos seriam chamados à liça, ensinando a dieta conveniente para a abundante produção das ventosidades anais.)
No fundo, somos energia em movimento. Quando ouço aquelas teorias esotéricas que juram a pés juntos que somos energia em potência – tanto que há uns especialistas que desenvolvem um dom que consiste em discernir a aura que rodeia os indivíduos – percebo: essa energia vem da flatulência sedimentada no organismo.
Os perseguidores do lucro fácil ainda não perceberam a mina escondida dentro de cada humano, é o que é.