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Uma sombra, volátil como o são as sombras que se esquivam na penumbra, vem ao teu encontro. Traz ao regaço um singela flor. A flor que desembacia a penumbra, irrompendo fosforescente. A flor caldeia a macerada escuridão de onde te encontras. Ao início, não percebes se estás no limbo que torna indistinguível sono e lucidez. Não percebes se é apenas um fugaz fantasma movendo-se na leveza corporal. Aqueles instantes consomem-se no que parece uma eternidade. A flor embota-se nos olhos do vulto. Dir-se-ia que a flor, em toda a sua iridiscência, se plasmou nos olhos do vulto. Sentes um sobressalto, como se uma brisa repentina deixasse a tua ossatura embebida num esquálido, frágil véu. E sentes: que esse véu desnuda os escombros em que te revelas no contraste com a luminosidade da flor estendida pela mão aveludada do vulto.
Pressentes: que deves recusar a flor oferecida. Afogueado pelos pesares da apreensão, recusas a flor inclinando o rosto lateralmente. O forasteiro que traja de escuro, cindindo-se com a penumbra do momento, continua emudecido. Resiste à erosão do tempo em que se mantém a tua recusa, segurando a flor com a mão estendida. A flor, notas agora, oferece-se na simplicidade da sua nudez. As pétalas ostentam algumas gotas perfumadas pelo orvalho da madrugada. Um par de gotas escorre pelas paredes acetinadas das pétalas esbranquiçadas, deixam um rasto que faz lembrar o sortilégio das lágrimas depostas no rosto de alguém possuído pelo desânimo.
O homem que parece não ter rosto insiste na dádiva. Esboça um gesto delicado com a mão onde repousa a flor, inclinando-a para ti com discrição. Como quem convoca à aceitação da oferenda. E tu, tão emudecido como o vulto, pareces tomado pela inércia. Não te ocorre uma palavra sequer, e todavia há um turbilhão de pensamentos que contamina a apatia. Não esboças mínimo esgar, como se uma súbita paralisia houvesse intumescido as veias por dentro. O vulto, sempre com o largo chapéu escuro com as enormes abas pendidas sobre os olhos, não se demove. Repete a declinação da flor.
Do aluvião de hesitações soergue-se uma interrogação. Queres saber a quem se deve tamanha generosidade. E logo, uma outra perplexidade que apetece pespegar à resposta do homem desconhecido: a que se deve a oferta da flor. Mas continuavas emudecido, como se receasses que o vulto se apoderasse da tua ingenuidade. Como se temesses que aquela flor fosse um logro e assim que nela a tua mão pousasse um mordaz, inodoro, veneno se libertasse. Sabias que não se afigurava motivo para que alguém depositasse em ti uma flor como sacrário da sua gratidão. Não havia memória recente que desatasse os vestígios da tua generosidade. Foi quando sobrou outra dúvida: podia ser que o homem possuidor daquela flor tivesse vindo ao engano. Desemudeceste, por fim:
- A que se deve a flor?
- A nada. Recebe-a. Uma flor nunca se recusa. Não interessa quem a oferece.
Desarmado, estendeste a mão. A flor entrou na tua mão, deixou-a com os vestígios gélidos com que fora dada. Sentiste um frio intenso a subir da mão pelo braço, contagiando-se ao resto do corpo. Como se as raízes do gelo se enquistassem nas veias, deixando-te a tiritar de frio. E depressa aprendeste que esse frio era um bálsamo. Percebeste, então, que não se recusa flor oferecida.
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