In http://dementia.pt/mais-um-mortal-falhado/
O trapézio cintilante, sedutor, segura o vazio que se desprendia nos fundilhos da rede de segurança. Os pés prosseguem, confiantes, como o leão caçador avança na véspera de devorar a presa perseguida. Os olhos irradiam uma resplandecência singular, sem se desviarem por um instante do firmamento que amadurece um rosário de promessas. É como se detrás da cortina baça, da invisível distância a que se coloca o horizonte, estivesse um papel de parede bucólico, impregnado de pequenas flores coloridas.
O abismo sob os pés não trémulos não vacila o passo, que se estuga na desejável velocidade de cruzeiro. O varapau nas mãos afeiçoa o equilíbrio. Estremecem os braços, ondulam ora para um lado, ora para o outro, desembainhando o equilíbrio que fermenta o passo certeiro sobre o trapézio luminoso. Os olhos inspirados na maresia do horizonte que se desdobra em mil promessas não perdem a radiosa expressão. Podem ser miríficas, ou não, essas promessas; é o lado da equação que sobeja incógnita. Mas isso não interessa. Do alto do trapézio, enquanto avançam sem relutância, os pés fincados nas arestas da corda ajuramentam-se na recusa do derribamento.
Só que um demónio contumaz e catatónico azougou a acalmia que nem um esboço de brisa inquietava. Bateu as asas com a fúria própria das almas desarranjadas e investiu contra o remanso do trapézio. As ondas de choque, em jeito de abalo telúrico, fizeram adornar a corda onde repousavam os pés na sua, até então, caminhada certeira. O horizonte diante dos olhos ficou coalhado com os olhares disléxicos. O combate do pés contra as cordas dançantes era desigual, os predicados de equilibrista incapazes de amortecer as ondas de choque que descompunham o sopor do trapézio. As pernas pareciam desconjuntadas. Os pés perderam a sua âncora nas arestas cortantes da corda. O corpo caiu no precipício.
A queda parecia um interminável slow motion. Diante dos olhos passaram: aves pernalta na sua indiferença, pétalas leves exalando um perfume ímpar, retratos de gente anónima (ou não tanto – apenas gente perdida nos escombros da memória), moedas douradas cunhadas com a esfinge de um suserano imaginado, cordas relapsas escapando-se por entre os dedos que as tentavam alcançar em salvação derradeira do degredo. Uma insondável alegria domou os sentidos, domou o pânico colonizador assim que os pés perderam ancoragem na corda que se desprendera do fio do horizonte. Ensaiou uns saltos mortais, cambalhotas avulsas, uma coreografia demente enquanto o corpo se perdia, com uma lentidão que desmentia as leis da física, na voragem do vazio.
Eram instantes, todavia; é que não se desmentem as leis da física. Mais pareciam dias sem fim, dias em que não havia distinção entre a noite brumosa e a luz clara do dia. As piruetas esmeradas embaciavam a claridade em redor, mas os tons plúmbeos eram estranhamente agradáveis, deles soavam melodias que colonizavam os corredores do labiríntico pensamento.
Já convencido do estouraz trambolhão quando o abismo ruísse no seu fundo, acordou sobressaltado, mergulhado num espesso suor exportado do pijama para os lençóis. Os saltos mortais, tarefa impossível, são ofício circense. Ou estão aquartelados nos impenetráveis dédalos dos sonhos.
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