23.6.11

Raiva autofágica


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Medem-se, as palavras? Tira-se as medidas antes de elas se deslaçarem, irremediáveis, entre os dentes? Às tantas, as palavras são archotes em carne viva que magoam os ouvidos que as escutam. Nessa altura, o mal está todo feito. As palavras desmedidas espalharam-se na carne alheia, incinerando-a com a acidez própria de uma substância química atroz.
A partitura das palavras que assim se entoaram é o cadafalso para onde o corpo é atirado. E por mais que sobrem os pesares, eles esbarram na parede da inutilidade. As recordações obrigam o pensamento a virar-se a montante. A sopesar as palavras ditas e que porventura deveriam ter sido guardadas. A vasculhar nas algibeiras os sedimentos embotados pela macieza do tempo. E a interrogar: se não seriam os sentimentos embotados a fenda por onde espreitaram as palavras que andavam atamancadas no silêncio interior.
Sobra a raiva. Uma raiva que se acomete contra o próprio autor das palavras desapiedadas. Como se quem as proclamou se virasse contra a imoderação do pensamento assoberbado pelas palavras em livre fluência. E se açoitasse, numa autoflagelação sem serventia. Essa raiva autofágica é o altar, o altar que se assemelha perene, onde se depõem os sentidos ininteligentes. De nada serve, a raiva autofágica. Senão para confirmar uma pulsão suicida, a tremenda atracção pelo abismo. É como se os pés desafiassem o precipício numa linha ténue a convocar o desequilíbrio. Os dias todos iguais, a modorra que ensoberbece nas sombras dos dias iguais, desalinha a lucidez.
Passado o tempo da raiva autofágica, despontam os focos da racionalidade. Atiram-se interrogações constantes contra a parede onde se demandam as respostas. E, apesar de muitas interrogações devolverem outras interrogações numa espiral que parece não ter fim, as respostas fermentadas pela intimidada racionalidade fazem o seu caminho. As folhas que assentam no esqueleto da partitura já são outras. Uns pós distantes enfeitam os papéis onde se depõem as respostas. Para o caso, não interessa se as respostas são encomendadas, ou se apenas arpoam uma ilusão que se sedimenta detrás do velhaco manto da raiva autofágica, tentando encobri-lo.
Tudo tem um significado. Nada é vão, nem as palavras entoadas que, lá atrás, maceram a contrição. A coreografia dos impulsos interiores desata os passos, harmoniosos ou destravados, em que se destoam as palavras ditas. Podem ser prenúncios de algo, ou simplesmente a abertura das algemas que amordaçam os movimentos que se decantam em sua liberdade. A raiva autofágica é apenas um ardil que desaprova as palavras entoadas, como se elas não quisessem ser ditas. A raiva autofágica é uma punitiva autocomiseração que se incendeia num beco sem saída.
A tessitura do tempo pode parecer madraça quando ele se escoa na sua aparente lentidão. Mas ele é terapêutico, generoso. As camadas de poeira anestesiam as palavras pungentes de outrora. O que a um tempo só parece malsão, na pusilanimidade das palavras exorbitadas, amansa com a distância dos olhares remetidos ao exigível refrigério. A raiva autofágica, esse punhal suicida que sangra a lucidez, é um terramoto escusado.

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