17.6.11

O que se pede à chuva


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Fala à chuva. Fala-lhe, mesmo que o céu esteja ornamentado com um azul fulgurante. Nas preces, não te esqueças de encomendar uma chuva que escorrace mostrengos que se perfilam, teimosos, no horizonte. Encomenda uma chuva caridosa, imorredoira, adocicada. Uma chuva que apeteça apanhar sem receio de te encharcares.
Não te esqueças da chuva. Pode fazer-se bravo o estio, as sequelas do calor apetecível tornando-o extenuante, a rua convidativa, tal como os mergulhos na água temperada, os gelados irrecusáveis, as noites perfumadas com um aroma tropical. Pode ser apetecível a estação estival. E tu, cansado de uma invernia demorada, da chuva que achas sempre excessiva, nem percebes a agonia lenta da estação indolente. Quando destapas o farol do entendimento, sentes falta de um ingrediente ao início ininteligível. Debates-te com a errância do pensamento, que voga nos dispersos que pontuam o azulado céu posto diante da distraída cabeça. Até que te apartas do dilema: sentes falta da chuva.
Aprendes que a chuva lava as sujidades que se depõem nos interstícios do tempo. Elevam-se as bandeiras que emprestam mais cor ao Verão, andam as crianças em berraria no areal, os velhinhos desocupam os agasalhos de lã grossa enquanto se demoram nos bancos do jardim. As fontes, procuradas por turistas descomplexados em dias de canícula, prometem aos indígenas o refrescamento que os pudores conservam em letargia. Os dias, os longos dias em que a claridade se estende num sol a sol vagaroso, desembainham a preguiça dos corpos. Dizemos que as férias esperam a sua serventia, o sossego dos corpos e das mentes extenuadas por um ano sempre mais longo do que parece. E não damos conta que a chuva ausente ungia os equinócios desdobrados em frágeis folhas de papel.
Encomenda as preces à chuva que se retirou. Prepara o chão ressequido para as primeiras gotas grossas depostas por um acastelamento de nuvens. Prepara o olfacto para o êxtase do odor inconfundível da terra molhada pelas primeiras gotas que beijam o solo. Como se fosses um escansão dos odores coreografados numa sinfonia de elementos que te leva a deificar a natureza. Depois, deixa-te ficar, testemunha da intensidade da tormenta que desnuda os rigores invernais num extemporâneo acaso.
Não te olvides de reter as palavras entoadas pela chuva que cai. Decifra os sons da melodia ruidosa que se encavalita na chuva que tomba sobre as árvores e o chão. Abstrai-te do resto. Verás que é como se não houvesse mais sons ao teu redor. Só contam as gotas, ora grossas, ora intimidadas pela fúria do estio interrompido, no seu débito recorrente, emparelhadas com palavras escondidas que te cabe traduzir.
Verás: que a chuva retardada ensina uma lição qualquer. A que tu quiseres embolsar, ou lições ingratas que, contudo, são irrecusáveis. Não enjeites a sinfonia da chuva desatada pela estival intempérie. Imortaliza as suas palavras num retrato e emoldura-o. Quando fores acossado por fantasmas que se soerguem em irregulares episódios, exorciza-os com a bênção das palavras retidas pela vociferação da chuva inóspita. 

3 comentários:

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

Não basta um chuveiro circunscrito, pois não?
Tem outro sentir quando cai do céu, num exorcismo furioso, sem complacência, universal.

Quando o mundo que julgamos dominar fende, algo maior (como a força tempestiva da chuva) impõe-se sobre nós e tudo se relativiza. Sabe a mortalidade

PVM disse...

Eu diria: sabe a imortalidade. Pela renovação que traz. Nem que seja uma imortalidade falaz.
E, nem de propósito, hoje a chuva veio!

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

Verdade, a chuva veio.
Foi um pedido veemente, sem dúvida!