24.6.11

Feios, porcos e maus


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Andavam descalços em casa, os pés encardidos pela sujidade acumulada. Eram descuidados com a roupa de trazer por casa: uns andrajos que deixassem o conforto trautear melodias pelos poros transpirados. Pose negligente quando estavam à mesa, os talheres desordenados ornamentando o almoço confeccionado às três pancadas. Ela coçava o cabelo que não visitava chuveiro há uns dias sem conta. Ele sentara o pé descalço em cima da cadeira e esgadanhava, distraído, uma das unhas sujas enquanto a outra mão molhava uma bucha de pão no azeite temperado com orégãos e alho. Estavam a meio da refeição quando apareceu a prole, os dois rapazes esgrouviados. Um não quis a sopa albardada que já arrefecera.
- Isto está frio, não tem jeito nenhum, grunhiu entre dentes, olhando na direcção oposta à da mãe, sem que, contudo, ela não deixasse de ouvir aquelas sílabas atamancadas.
- Viesses para a mesa a horas que a sopa estava a preceito. Mas se não queres, deixa-a para aí, rematou com desinteresse à mistura.
O filho mais velho chegou à cozinha estremunhado. Fez ligação directa da cama para a mesa onde o esperava outra sopa esfriada com uma mosca a boiar em desespero, acenando os derradeiros movimentos das asas na vã tentativa de se soltar da pegajosa mistela esverdeada. Esfregou os olhos e limpou as mãos à camisola desbotada com as mangas esfiapadas, à camisola que ostentava nódoas de mostarda (o cachorro que a fome devorou antes de se deitar). Aquela mancha negra, ao início indistinta, não motivou comentário. Só quando desentorpeceu é que notou o insecto em decadência a molhar na sopa. Mas a fome era tanta que sacudiu a mosca com os dedos, como se estivesse a jogar carica, e nem pediu substituição do caldo. Tossiu à primeira colherada, protestando:
- Esta sopa não tem ponta de sal.
Ninguém se acusou. A mãe, com aquele ar lunático de quem não parecia afamada actriz, trincava uma maça excessivamente madura enquanto, ao balcão, por entre a imundície da louça de três dias, se entretinha com um exercício de sudoku. O pai desossava a cabeça do coelho estufado, espalhando uma gordura fétida pelos dedos e pelos arredores da boca. Em sentindo comichão no cocuruto, levou uma das mãos engorduradas ao cabelo e despenteou-o, fixando uma melena pastosa. O filho mais novo foi ao caixote onde o gato urinava e pegou uma mão cheia de areia contaminada. Pediu ao pai que chegasse um guardanapo, que o dele tinha vestígios de fuligem. O pai fez-se desentendido enquanto descia a outra mão besuntada até ao dedo do pé com a unha proeminente. O rapaz repetiu o pedido. O pai, contrariado, vociferou:
- O raio do rapaz que não me deixa em paz! Toma lá uma resma de guardanapos. Um estará limpo.
Ao sentar-se, sem olhar para os restos do petisco que laborava em minuciosa função, pegou no crânio quase desossado do coelho e sentiu uma matéria áspera. O rapaz tinha feito um crocante exterior à cabeça do coelho com os vestígios de areia urinada pelo gato. O pai disparou numa correria enfurecida atrás do rapaz, ajuramentando vergastadas bem dadas não fosse dar-se o caso de o petiz ser mais ágil. A mãe interrompeu o reboliço:
- Calem-se e estejam quietos. Não ouviram a campainha? Deve ser a jornalista que vai fazer a reportagem sobre nós para aquela revista, a...a....
A repórter ficou abismada assim que entrou no pardieiro. Como podia gente tão famosa, ela actriz com consagração internacional e ele escritor laureado, exibir tanto desleixo numa revista cor-de-rosa? Quando a jornalista chegou ao escritório com um joelho pisado (cortesia do rapaz mais novo) e a saia estragada por uma nódoa do estufado de coelho, só lhe ocorreu, ao passar os olhos pelas fotografias tiradas, um título para a reportagem: feios, porcos e maus.
Ainda lançou a ideia. O chefe de redacção, sempre paternalista, deu-lhe duas pancadas no ombro e ordenou, com delicadeza, que usasse título compatível com a identidade da revista. Não se destroem ilusões montadas.

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