22.6.11

A queda de um anjo


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Acordou, os olhos ainda entaramelados pela noite mal dormida. Içou o corpo pesado depois de uma dezena de promessas. Arrastou os pés para a micção matinal. Pelo caminho, os olhos esbarraram no pequeno móvel num dos cantos do quarto. O seu retrato estava tombado. Com o rosto virado para a face do móvel. Não estugou o passo, mantendo o arrastamento maquinal dos pés descalços até à casa-de-banho.
Enquanto despejava a urina pelos contrafortes da sanita amarelecida, não saía da cabeça o passe-partout caído com o rosto beijando o castanho enegrecido do móvel. Ele nem era dado aos simbolismos que certas pessoas tratam de pespegar a actos e palavras que rimam com dias e horas, ou com acontecimentos seleccionados. Mas naquela alvorada que soava a contratempo (por causa da insónia e dos pesadelos que enxamearam o sono), a fotografia mental do passe-partout caído escondendo o seu retrato desatara o embaraço.
A certa altura, incomodado pela imagem que teimava em adejar sobre as sombras da memória, tentou sacudir dos pensamentos a alquimia cabalística que se insinuava. Queria lá saber se o retrato tombado no dorso do móvel significava o que quer que fosse. Porventura foi a empregada que faz a limpeza da casa que tocou no passe-partout com o seu anafado cotovelo sem dar conta. Ou foi ele que, nos encontrões denunciando o avançado estado etílico com que chegara a casa na véspera, esbarrou no móvel e derrubou o retrato.
Às duas por três, enxertou-se nesta confusão mental um artigo lido do jornal do dia anterior. Enquanto esperava pelo almoço e matava o tempo passando os olhos pelas notícias, lera que um psicólogo de vanguarda explicava que a tristeza não é maleita. A tristeza é um ingrediente do processo de crescimento das crianças. Nos adultos, açambarca o sentir do seu contrário. A tristeza é imperativa, ou a alegria é despojada de sentido, como se fosse uma concha vazia sem sabor. A nostalgia, se for bem doseada, é uma caução para a felicidade.
Nisto, e em se demorando o pequeno-almoço mercê das efabulações, espetou-se-lhe uma interrogação no córtex cerebral: que causalidade havia entre o seu retrato tombado e a psicológica teoria da profilática nostalgia? Assomou às recordações uma tia esotérica. Até lhe saltavam as córneas se soubesse que ele tinha lido aquela peça de psicologia de algibeira e, na alvorada seguinte, dera de caras com o retrato escondido na penumbra da madeira escurecida. Ela diria: as coisas não são por acaso. As forças do universo congeminam-se nos acasos que só o são para os incautos.
Nem saboreou o pequeno-almoço. As torradas entravam, maquinalmente, pela boca. Não se lembrava se o café com leite estava açucarado. Não sabia se tinha tirado o café expresso no final. A atenção estava locupletada pela lancinante pergunta: o passe-partout caído com o seu retrato ocultado proclamava que ele deixara de contar para a aritmética das almas? Os pensamentos vogaram nisto o dia inteiro. Por mais que recusasse a cientificidade dos esoterismos banais da tia, aquela interrogação ia e vinha, entrava-lhe pelos olhos e buzinava, estridente, aos ouvidos.
Ao deitar, sossegou-se. A fotografia estava como a vira na alvorada. Não vinha mal ao (seu) mundo. Desse ouvidos aos impantes esoterismos e, ao menos, podia dormir sossegado. Caíra – sussurrava, sem se deter –, o retrato deposto. Mas caíra um anjo.

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