29.2.12

O jardim das delícias (capítulo XIV)


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Eram rosas perfumadas, as rosas remoçadas pelo tempo que dobrou as escarpas de outrora. Era como se todas as alvoradas fossem um altar onde as crisálidas se abriam, sorridentes, festejando outro dia. Os dias iam uns atrás dos outros neste corrupio de promessas. O bom povo acreditava. A cada amanhecer que crescia em fulgurante exibição de claridade, o bom povo refrescava o sorriso. Podia não haver dinheiro, como dantes. Podiam escassear os alimentos, a fome espreitar entre as dobradiças do futuro. Mas o bom povo sabia que o porvir era um lampejo de claridade. Os dias de lá só podiam vir debruados a ouro. Um refrigério.
Os meses juntavam-se num punhado sem que as pessoas sentissem o quotidiano a  mudar de penugem. Às vezes, não havia dinheiro para os salários a tempo. Os alimentos ora rareavam nos mercados, ora apareciam a preços próprios para magnatas. Mas estes tinham desertado. As suas posses estavam ao deus-dará. Açambarcadas por quem lá tivesse chegado primeiro. Os salteadores faziam riqueza inesperada com o soldo das pilhagens. Especulavam. Os líderes da revolução davam prédicas moralistas na televisão. Ensinavam as virtudes da ausência de lucro. Não eram coerentes os que tinham andado a vociferar nas ruas e agora se locupletavam com bens alheios. Repetiam os apelos: que o povo não se apropriasse dos bens dos ricaços covardes; deviam ser devolvidos à posse do Estado, que o Estado estava à míngua de recursos.
A retórica para consumo interno era louvaminhas do oásis. Nem que fosse para convencer os incautos que a revolução fora terapêutica. Os desafios eram uma empreitada e tanto: tinham de trazer felicidade ao povo por tanto tempo enganado pelos melífluos capitalistas. (Riscaram da retórica o capitalista conceito de “bem-estar”.) A economia não corria de feição. E o bom povo, cansado dos dias a eito, do punhado de meses sem mudança de horizonte, começou a desconfiar. Os sorrisos esbateram-se, amareleceram ao princípio. Depressa foram banidos pelo desalento.
Foi então que o líder supremo veio à televisão mandar justificações: a culpa era da conspiração dos países que teimavam no capitalismo. Tementes do êxito da revolução, queriam-na desfazer pela base. E puseram o país à míngua.

28.2.12

Não havia lei da selva (capítulo XIII)


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Afinal a propaganda importava. Afinal, os revolucionários já não tinham aversão à propaganda. Em sua defesa, esgrimiam argumento indestrutível: ao menos esta propaganda está ao serviço de causas que favorecem o povo. Não podia ser mentirosa. Mesmo quando mentia: Por vezes, os fins justificam os meios.
Por aqueles tempos em que mal tinha assentado a poeira da revolução, as chefias e os pensadores esboçaram uma prioridade: convencer o mundo inteiro, e a começar os próprios patrícios, que a normalidade tinha aterrado. Não houvera resistência de quem foi deposto do poder. Os militares logo se alistaram no imenso exército de gente assoberbada pela indignação contra os fascistas do capital. Não houve sangue derramado. Nem tiros disparados. As vésperas foram de violência atroz: pertences incendiados sem critério, lojas saqueadas e depois ateadas com petróleo incensado, bárbaras agressões aos poucos aduladores do regime em estertor. Mas isso fora a voz da revolta, gritada a plenos pulmões, a voz incapaz de aguentar as contínuas aleivosias dos banqueiros, dos capitalistas que teimavam no consumo ostensivamente ofensivo.
Agora estava tudo nas baias da normalidade. Os malévolos saqueadores da riqueza do povo tinham fugido para o estrangeiro. Só alguns foram metidos em cárceres. Era preciso convencer o mundo inteiro da normalidade. Ou a maré revolucionária não conseguia aportar noutras terras.
A propaganda escondia, debaixo do seu véu amotinado, um mar de sangue. Em tresloucada vingança, os poucos magnatas apanhados antes de zarparem foram vítimas da barbárie. O povo queria a justiça nas suas mãos, nas praças públicas. As chefias, tementes do efeito devastador, mandaram calar a populaça. Em surdina, prometeram que a justiça seria feita como o povo queria. Mas sem os holofotes da imprensa. Garantiram que os julgamentos seriam exemplares. E eram. Julgamentos expeditos, sem direito de defesa (a não ser por uns neófitos advogados sem experiência). Sem direito a apelo para tribunal superior, que o tribunal popular nascido do nada era o tribunal arvorado em sua majestosa superioridade. As sentenças eram cruéis. Os magnatas e alguns ministros e conselheiros descobertos a tempo, liquidados com requintes de malvadez no dia da sentença.
A propaganda escondia estes vícios privados dos olhos do mundo inteiro.

27.2.12

A doutrinação das massas (capítulo XII)


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Antes do imperialismo saudável que viria romper com o monoteísmo capitalista, antes da exportação da causa para outros lugares, impunha-se assegurar a fidelidade das massas. À partida, não era tarefa árdua. A revolução começara nas ruas. Os amotinados eram o retrato da heterogeneidade, cortando a eito nas gerações e até nas condições sociais. As pessoas que andaram a lutar contra a maniqueísta ordem policial viveram dias felizes, aqueles dias em que ateavam incêndios contra a opressão de um sistema senescente. À última hora, a deposição do poder fora tão ágil como um sopro flácido num baralho de cartas. Num ápice, o regime dos corruptos desmoronou-se. Quando os revoltosos deram conta, tanta a facilidade em tomar de assalto os ministérios e os quartéis, a corja de bandidos tinha-se exilado. A tempo. Poucos ficaram para o necessário julgamento popular.
E, todavia, os arquitetos da revolução, em não sendo destituídos de faculdades mentais, souberam congeminar a conservação do poder. As massas haveriam de receber instrução. Dos bons livros, que acusavam os atropelos do grande capital, a perfídia dos banqueiros, a orquestração dos políticos a soldo dos interesses sem rosto visível. Era preciso ensinar às massas que elas eram soberanas: tinham o poder na mão, podiam ensaiar propostas nas assembleias populares, organizadas ou espontâneas. Tudo se faria de harmonia com a vontade do povo.
Não se podia era admitir que nos bastidores, antes do bom povo achar que tinha a última palavra, personagens infiltradas pelo poder manobravam na sombra. Mexiam os cordéis para se decidir o que convinha ser decidido. As verdades inconsequentes e as que não soassem convenientes deviam ser obliteradas. Não fosse o povo, sobretudo o possuidor de apurado faro de justeza, estranhar a denegação. Os melhores peritos de comunicação foram requisitados. Tinham uma função: pintar uma tela com as cores paradisíacas para alimentar a consciência revolucionária do bom povo. Os que quisessem dissidir tinham as fronteiras abertas. Com sinal de saída, apenas.
E depois, só depois, quando os alicerces da revolução estivessem entranhados, os camaradas de outros lugares podiam contar com a sua parcimoniosa ajuda. A revolução ia a caminho da universalidade. 

24.2.12

Usar e deitar fora (capítulo XI)


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Acordou depois de um sono de três horas. Estremunhado que estava, demorou a perceber se a tarefa que lhe tinha sido pedida trazia excitação. Ou, devia dizer, tarefa exigida – o preço pela liberdade, a liberdade condicionada que fora desembaraçada.
Já pernoitara no hotel, justamente no hotel que tinha sido reservado em seu nome quando viajara nas funções que tinha dantes. Mas não podia sair do país. Passava a ser um consultor de topo, com direito a algumas mordomias limitadas à modéstia em que o país se metera. Tinha motorista e guarda-costas. A bem dizer, o guarda-costas era um espião pessoal que media todos os seus passos, não fosse fermentar o arrependimento, ou um golpe de asa oportunista o levasse a transitar para o lado de onde viera. Os contactos com a família, só sob a vigilância das autoridades instituídas. Era uma prisão dentro da liberdade. Estava resignado. Soubera que dois dos colegas que viajaram consigo já tinham sido sumariamente executados.
Acabara de sair do chuveiro e já tinha o controlador pessoal à espera, dentro do quarto. Trouxera-lhe a indumentária. Não estava a contar com fatiota aprumada, nem gravatas de seda e botões de punho que o deixassem apessoado como se habituara. Era roupa arcaica, monástica, de cores escuras e discretas. E uns sapatos usados que descambavam para o exterior, desconfortáveis. O homem que tinha a função de o vigiar era de poucas palavras e de menos risos. Espartano, até no trato. Quando se apresentou, deixou o novo consultor na destruição do capitalismo de mão estendida.
Desta vez já não viajou de olhos vendados. Chegou aos estúdios da televisão e logo foi cercado pelas câmaras (das estações locais e das muitas estrangeiras que foram atraídas pela sua presença, como se fosse isco). O  chefe supremo estava no estúdio à sua espera. Desta vez, a saudação foi fria. Estranhou. Filmaram o que havia para filmar, com as declarações combinadas em que o antigo negociador internacional anunciava ter mudado de ideias. No fim da função, o chefe supremo virou as costas, sem a cortesia da despedida.
À saída dos estúdios, murmurou para um operacional: “faz como combinado. Tira a tosse a esse traidor. Deixou de ter serventia.

23.2.12

O chefe da revolução é cortês (capítulo X)


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A conversa com o líder da revolução foi cordata, minuciosa, técnica como o negociador internacional tresmalhado sempre gostou. Era o seu terreno. Ficou atónito com o à vontade do interlocutor. Às vezes, dava uns passos em falso na argumentação técnica, mas era conhecedor. A certa altura, já algum do gelo tinha esbatido, perguntou de onde vinha toda aquela bagagem.
- Sabe, nós também tiramos doutoramentos em universidades inglesas e americanas.
Ainda quis perguntar como podia defender ideias tão diferentes das que cultivou no tirocínio por uma universidade (inglesa ou americana). Receou que a ousadia fosse mal interpretada. Não queria que a interrogação soasse a um recuo, ele que jurara a pés juntos a conversão à nova ideologia que pretendia banir o capitalismo e devolver a liberdade e a dignidade aos povos massacrados. Perspicaz, o líder antecipou a pergunta que estava castrada algures no meio do temor reverencial:
- Eu sei que isto faz-lhe confusão. Mas não devia. O senhor também se converteu às nossas ideias. Mas isso não vem ao caso. Satisfaço-lhe a curiosidade: aprendi a cartilha toda dos ideólogos do capitalismo. Não demorei a transitar pelos seus antípodas. O senhor demorou. Mas ainda vem a tempo.
Sentiu algum escárnio escondido entre os dentes desta hospitalidade. Mas como havia muita informação que garantia a alforria, logo indagou que utilidade podia ter.
- Queremos saber tudo o que é escondido pelos fascistas do capital. Queremos saber os segredos que guardam em concubinato com o poder corrupto. Queremos usar essa informação para tirar a máscara ao poder que é serventuário do grande capital, em continuada traição ao bom povo.
Foi uma tarde inteira. E depois do jantar (como já sentia falta de uma refeição opípara), a prestação de contas entrou pela madrugada. O chefe supremo da revolução, acolitado por uns economistas muito jovens, recolheu todos os segredos que haveriam de implodir os alicerces do aziago capitalismo. Deitou-se, já a alvorada espreitava entre a noite em deposição. Cansado. Acreditava – ou queria acreditar – que tinha cumprido um dever. Ao menos safara a pele.
No dia seguinte tinha de se aprumar para aparecer na televisão ao lado do chefe da revolução. O mundo inteiro ia travar conhecimento da sua nova função. Os banqueiros e os políticos medrosos até teriam de soltar o nó da gravata, tão borrados de medo.

22.2.12

O chefe da revolução é um burguês (capítulo IX)


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Mais uma hora de viagem. Outra vez com os olhos vendados. Continuavam a não confiar no negociador internacional que se passara para o lado dos aspirantes à matança do capitalismo. Chegara a um local ainda mais quente, como se ali houvesse um microclima onde o calor vomitava um bafo de deserto. O ar seco enxugava a garganta. O suor acrescentava mais cheiro pestilento ao que já sobrava no ar.
Esperou numa sala em penumbra. O tempo parecia arrastar-se com uma lentidão doentia. A espera era excruciante. As gotas de suor que escorriam dorso abaixo encharcavam a camisa que trouxera em viagem. Olhou para a camisa. Estava encardida, os vincos das partes amarrotadas tingidos pela sujidade. A angústia não parava de morder os lábios entaramelados. E, a crer no aperto de mão do interlocutor anterior, não devia temer nada. Aquele aperto de mão era a caução de um acordo. A conversa com o número um da junta revolucionária seria uma formalidade. Assim como assim, quem congemina as decisões são os peritos que ficam na sombra. Os mandantes só as selam com a assinatura.
Foi chamado ao gabinete do chefe supremo. Ao entrar, viu um homem corpulento de costas. Envergava um fato aprumado, dir-se-ia dos melhores alfaiates italianos. Cumprimentou-o sem se voltar na direção do visitante. A mão direita golpeava o caule de um charuto. Em cima da mesa, um uísque com duas pedras de gelo. Ainda de costas, o chefe supremo perguntou ao visitante se era servido. Do charuto e do uísque. Agradeceu, com voz trémula de indisfarçável enervamento, e declinou a oferta. “Não fumo nem bebo”. Ao que o outro, enfim dando a conhecer o rosto, redarguiu com veemência autoritária: “pois faz mal. Não sabe o que perde. Não tem prazeres mundanos?”.
O desertor, o oportunista desertor da causa capitalista, ficou sem resposta. Estava aturdido com os hábitos de pequeno burguês do líder da revolta. Imaginou-o em marcial fardamento, à imagem do estado de sítio que ainda estava decretado. As mãos e a boca tremiam, como se de repente o calor insuportável desse lugar ao frio glaciar. Aquele silêncio perturbava-o. A impassibilidade do líder dos revoltosos, mais ainda. Queria esboçar um começo de conversa, mas temeu que a impertinência fosse mal ajuizada. Percebeu que o chefe supremo queria terminar o charuto e o uísque. Aguardou, enquanto a fleuma do líder lhe contagiava o regresso à acalmia.