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O que os olhos enganam é a retórica da natureza. A geada, o espesso
manto de alvura que se compõe entre dois dedos de invernia, é um palco de
emboscadas. Esperamos que a encantadora película de gelo empreste beleza à
paisagem. Mas há um lado obscuro que cava mais fundo. O que é branco, negro se
transforma. É só passar das medidas, é só o mercúrio desaguar nas fímbrias de
um frio ártico. A geada passa a ser negra. Devastadora. O pior é que ela
continua a ser de uma alvura impressionante aos olhos desatentos. Os olhos que
se encantam com a vastidão da paisagem pintada com a brancura que resplandece
sob a batuta do sol tíbio. Do sol sem força sequer para aquecer a temperatura ou
para derreter a densidade do gelo que se deitou em sucessivas camadas por cima
dos campos.
É uma brancura sendeira de desgraças. Os almanaques explicam: esta geada
é negra sem ostentar as negras vitualhas que definham os campos. É negra porque
atamanca os campos com a sinistra personagem que transporta às costa uma ceifa
taladora. Enluta os campos e devolve os camponeses à pobreza irremediável.
Os elementos são convocados na sua paradoxal alquimia. O gelo, de tão
frio, atira-se contra a sua própria natureza. De tanto gear, queima. Faz tanto
dano como um fogo estival ateado na floresta e que invade os campos, de nada
valendo a bravura dos camponeses que arremetem contra a loucura das chamas enxadas,
terra já encardida e potes de água. O efeito é indiferente, seja o fogo, seja a
geada que se fez negra. A invernia severa apoquenta as almas que cuidam dos
campos. Não lhes dá tréguas, como os incêndios tisnados pelo sol abrasador.
O chamamento da geada negra evoca as posses que se
despojam quando há chão que desaba sob os pés. Cuidamos das almas? Ou somos
apenas empedernidos tutores de um utilitarismo vago que cura do desapego das
almas?
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