24.2.12

Usar e deitar fora (capítulo XI)


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Acordou depois de um sono de três horas. Estremunhado que estava, demorou a perceber se a tarefa que lhe tinha sido pedida trazia excitação. Ou, devia dizer, tarefa exigida – o preço pela liberdade, a liberdade condicionada que fora desembaraçada.
Já pernoitara no hotel, justamente no hotel que tinha sido reservado em seu nome quando viajara nas funções que tinha dantes. Mas não podia sair do país. Passava a ser um consultor de topo, com direito a algumas mordomias limitadas à modéstia em que o país se metera. Tinha motorista e guarda-costas. A bem dizer, o guarda-costas era um espião pessoal que media todos os seus passos, não fosse fermentar o arrependimento, ou um golpe de asa oportunista o levasse a transitar para o lado de onde viera. Os contactos com a família, só sob a vigilância das autoridades instituídas. Era uma prisão dentro da liberdade. Estava resignado. Soubera que dois dos colegas que viajaram consigo já tinham sido sumariamente executados.
Acabara de sair do chuveiro e já tinha o controlador pessoal à espera, dentro do quarto. Trouxera-lhe a indumentária. Não estava a contar com fatiota aprumada, nem gravatas de seda e botões de punho que o deixassem apessoado como se habituara. Era roupa arcaica, monástica, de cores escuras e discretas. E uns sapatos usados que descambavam para o exterior, desconfortáveis. O homem que tinha a função de o vigiar era de poucas palavras e de menos risos. Espartano, até no trato. Quando se apresentou, deixou o novo consultor na destruição do capitalismo de mão estendida.
Desta vez já não viajou de olhos vendados. Chegou aos estúdios da televisão e logo foi cercado pelas câmaras (das estações locais e das muitas estrangeiras que foram atraídas pela sua presença, como se fosse isco). O  chefe supremo estava no estúdio à sua espera. Desta vez, a saudação foi fria. Estranhou. Filmaram o que havia para filmar, com as declarações combinadas em que o antigo negociador internacional anunciava ter mudado de ideias. No fim da função, o chefe supremo virou as costas, sem a cortesia da despedida.
À saída dos estúdios, murmurou para um operacional: “faz como combinado. Tira a tosse a esse traidor. Deixou de ter serventia.

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