21.2.12

Um traidor ao serviço do povo não é traidor (capítulo VIII)


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Enfim, saiu da cela. Ia para quatro dias e não lhe era dado ver um vestígio da luz do dia. A cela era numa cave qualquer, onde o calor apodrecia ao medrar com o insuportável cheiro a suor e latrina. O negociador internacional não ia naquela figura apessoada com que posava para as fotografias que enfeitavam profusamente o gabinete em Nova Iorque. Ia algemado, desgrenhado, com a barba rala por escanhoar, exalando um odor pestilento.
Ia ao encontro de uma figura proeminente da junta revoltosa. Não lhe revelaram o nome. Meia hora depois, retiraram o capuz. Não percebera todas as medidas de segurança; até parecia um operacional de organização terrorista, até parecia que tinha treino de mercenário e que podia tirar uma qualquer carta da manga. Já antes não entendera porque o algemaram. A sua figura franzina não convencia os algozes? Não se incomodou com o trato humilhante. Por uma vez sentia-se um senhor robusto, orgulhoso por o temerem tanto.
Entrou num gabinete que tinha uma janela por onde espreitava uma paisagem deslumbrante. Os pensamentos longínquos foram interrompidos pelo figurão que irrompeu pela sala dentro. Arrastava umas botifarras de militar que troavam no soalho. Ainda mal se tinha sentado e já disparava a primeira pergunta:
- Disseram-me que o senhor tinha informações que podiam interessar à nossa causa. Eu sou uma pessoa com o tempo muito ocupado; pode-me revelar em poucas palavras que serventia é a sua?
O negociador ficou admirado com a cortesia em contraste com a boçalidade e a antipatia de todos os revoltosos que tinham esbarrado com ele. Notava-se que era um homem educado. Disse-lhe, a medo:
- Tenho visto as imagens da revolução na minha cela. Estou impressionado. Estes dias têm sido muito intensos para mim. Tem o senhor toda a legitimidade para duvidar do que lhe vou confiar a seguir, mas acredite que é genuíno: todas as causas por que me bati estavam erradas. Foi preciso ver o pulsar da vossa revolução para o perceber.
- Convença-me que não o devo tratar como oportunista. Convença-me que é apenas um traidor que está a tentar salvar a pele – retorquiu o revolucionário.
- É simples. Não lhe passa pela cabeça que posso ter feito uma conversão de ideias? E mesmo que isso seja irrelevante, não acha que tenho informações que podem valer muito para a vossa causa? Já sei que me vai perguntar o preço. É só um: a liberdade. Por ela ofereço justa contrapartida: serei vosso conselheiro na luta contra o capitalismo internacional. Creia-me que posso ser muito útil.
O figurão saiu da sala para telefonar ao chefe supremo. Regressou dois minutos depois. De mão estendida, pronto a selar o acordo.

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