20.2.12

O humor que há em crise (capítulo VII)


In http://album.home.sapo.pt/diversos/tasca01.jpg
Os reformados beberricavam o vinho fresco, a canícula a entrar por todos os poros. Nem a ventoinha valia para capar o calor. Suavam. Mas já não estavam angustiados, sem saberem se as reformas eram pagas na próxima visita aos correios.
Sorriam. Estavam animados, depois de desfeita a mordaça ditada pelos do estrangeiro, em assassino concubinato com políticos traidores. Os reformados renasciam. Voltavam às utopias da juventude, às utopias revolucionárias. Às utopias já mais pragmáticas quando frequentavam o sindicato, de como punham forças ao serviço da doutrinação dos operários. A tasca onde jogavam às cartas estava repleta de cartazes evocativos da ortodoxia comunista.
Do nada, um deles acenou no sentido da televisão. Passava em repetição um programa de humor quando os traidores mancomunados com os fascistas internacionais ainda semeavam o terror da pobreza. Era estranho: para os parâmetros ditados pela cúpula do partido, aquele humorista era persona non grata. Fora um deles, mas tresmalhou-se. A imperdoável dissidência. São mais inimigos que os adversários de sempre.
Mas os camaradas reformados estavam extasiados a relembrar o episódio emblemático do humorista. Ele usava sarcasmo para parodiar a crise ordenada pelos meirinhos do fascismo internacional. Desta vez, os reformados riam-se do número. Não é que já sentissem que a crise tinha levantado voo com a expulsão dos vendilhões, que talvez o tempo ainda fosse escasso a não ser para descerrar o ânimo. Mas riam-se. Aqueles eram dias bem dispostos. E até a proibição das cúpulas tinha sido evitada. O humorista era, por uns breves instantes, readmitido no campo de visão, escapando à censura das cúpulas.
O humorista passava a vista ao empobrecimento mandado vir de fora. Havia sempre um sol radioso em cada atentado aos direitos golpeados. No fim do número, a atriz que com ele contracenava, impaciente, atirava-se aos fascistas internacionais e aos seus mandantes. Irascível, ia dizendo que “estes pulhas estão-nos a f...”, mas o humorista foi a tempo e tapou-lhe a boca. Sussurrando-lhe ao ouvido: “não sejas vernácula. Diz apenas que nos estavam a aplicar uma massagem prostática.”
E um dos reformados, depois de rir a bom rir, sentenciou: “a massagem foi devolvida à procedência.”

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