21.9.12

Direção assistida


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Dizia-lhe a amiga: “tu não precisas de piloto automático. Deixa isso para os aviões que extraem à natureza humana a sua humana natureza”. Mas ela afogava-se em contradições. As hesitações eram a consumição de quase todo o tempo. Não parecia válido o desperdício de forças. Ela pressentia-o quando resgatava um bocado de lucidez e metia as mãos na água de onde trazia à superfície, com a nitidez da água nascente, o tempo que ficara para trás. Talvez fosse essa a causa: excesso de ventura. Ou o desconhecimento das perturbações que tiram a respiração, dos sobressaltos que locupletam o sono. As apoquentações pareciam um rosário cheio de nada, oco por dentro. A amiga sabia-o e, por vezes, irritava-se com tanta indigência. Era dura quando tinha de ser. Continuava a acordá-la para o mundo que não era aquele em que vivia imersa: “quando te pões assim, és um insulto aos outros – aos que já passaram, e agora estão incólumes, às contrariedades que deixam feridas abertas por muito tempo.” Ela parecia não ouvir quando as palavras da amiga soavam a reprimenda. Lá no fundo, admitia que a reprimenda era certeira. Mas logo voltavam os pensamentos a divagar entre o nada e coisa nenhuma, uma árvore incapaz de legar um fruto para amostra. Em jeito de súplica, atirou: “se não me concedes o piloto automático, ao menos concorda que preciso de direção assistida. Preciso da tua concordância. Da tua direção assistida.” A amiga, com a paciência a chegar ao ermo onde se transformava em deserto, anuiu. Reteve o olhar no firmamento, onde as nuvens altas boicotavam o sol do entardecer, pousando a mão sobre a sua: “tu sabes que sim. Sabes que sou, assim o queiras, direção assistida. Continuo sem perceber por que precisas. Personalidade tão forte não quadra com dependências.” Ela sufragou o momento com uma larga inspiração do ar fresco daquele final de tarde. Houvesse quem a entendesse nos seus dilemas. E que se danasse a sensação de dependência, como se fosse uma droga dura em que se tornara viciada. 

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