Cocteau Twins, "Those Eyes, That Mounth", in https://www.youtube.com/watch?v=iD0STDHNM8A
- Para
que serve o olhar?
- Assim dito – como dizer? – estou sem
resposta.
- Insisto:
diz-me para que serve um olhar?
- Mas queres que responda sobre o meu
olhar, ou sobre o olhar que assiste a qualquer um?
- O
que quiseres.
- O olhar: esquadrinha, analisa, mede
temperaturas, fareja os odores, decanta os pulsares que interessam, recusa o
inestético, caso a estética tenha serventia. É bastante, a resposta?
- Talvez.
Não te incomoda que haja olhares embaciados? E que esse embaciamento seja uma
acomodação de quem adestra os olhares às suas baias redutoras?
- Não devemos julgar os olhares dos
outros. Se há quem queira confinar-se à estreiteza do olhar, quem somos nós
para menosprezar o arbítrio de quem a toma?
- Capitulas
tão depressa? Não temos um dever de denunciar as camisas-de-forças que amputam
olhares?
- Mesmo quando essas baias são
voluntárias?
- Isso
não pode acontecer. O livre arbítrio não quadra com as baias volitivas. Não há
pessoa que consiga viver aprisionada num espartilho, mesmo que a ele se
entregue no exercício da sua vontade.
- Podes julgar os outros com tanta
certeza?
- Posso,
se...
- ...não podes. É uma intrusão que não
admitirias que ninguém viesse sobre ti cometer.
- Admitia:
se conseguisse entender a vontade manietada e que do esconjurar da minha
liberdade sobreviessem danos importantes.
- E terias lucidez para perceber que a
vontade não está livremente sufragada? A alucinação toma conta da lucidez, não
nos deixa ver, amputa o olhar. Não nos deixa ter um olhar se não restringido
pelas baias de que não somos tutores.
- Afinal
concordas comigo: o olhar deve ser descomprometido, sem restrições que aplaquem
a lonjura que o olhar alcança.
- Se me pedires para responder ao que
faço com o meu olhar, concordo. Não quero peias a obscurecer o espaço que
medeia entre o horizonte e o meus olhos. Outro tanto não afirmo para o olhar
dos outros.
- E
não temes ser amordaçado por uma contradição insanável?
- Não. Repara: tu não podes impor aos
outros a liberdade que ajuízas salutar para ti. Essa é uma liberdade
condicional. Todavia, ao ser condicional deixa de ser liberdade. Tens de
ensimesmar; fugir da tentação de aos outros impores o que para ti julgas curativo.
Deixa cada olhar respirar pelos poros que o resguardam.