30.9.14

Vindimas


Sensible Soccers, "Sob Evariste Dibo", live at Oliva Sessions, https://www.youtube.com/watch?v=Q25Ol-86a_Q
E se formos passageiros dentro de nós mesmos e acharmos ramos perecíveis, ramos que já deixaram de ter serventia, ramos por onde se esbulham os movimentos? Ramos que parecem frondosas construções divinas, com farta ramagem de onde pendem cachos de uvas que exalam o perfume dos deuses? 
Não nos deitamos na letargia. Nem nos apoquentamos com o sol outonal, que mais parece um feixe do estio fora do tempo, a fermentar o adocicado das uvas em que vêm beber pássaros e abelhas famintos. Não nos iludimos com a paisagem bucólica servida nas ramagens avivadas e nos bagos de açúcar que tingem a paisagem com um variegado de vermelho forte, quase negro. Antes de as folhas perecerem e ornamentarem a paisagem com o acobreado que enfeitiça os olhos dos viandantes, tratamos de despejar os braços das adiposidades frutais. Antes dar-lhes finalidade do que sobejarem nas ramagens e lentamente adormecerem no decaimento do outono, como matéria morta incrustada em matéria viva. Antes que se passe para um contágio insalubre e até aos braços se contamine a doença, dispam-se as uvas para o alguidar do vinho, destronem-se os galhos da vegetação frondosa na sua coloração acobreada, metam-se as mãos dos ajudantes na função e despojem-se todas as cicatrizes que possam infetar no tempo que está por vir. 
Fazemos vindimas para não decair num estertor decadente. Os frutos que daí vêm, e o néctar que por seu intermédio há de ser colheita, são erupções acessórias. Ou talvez sejam, apenas, a condição que pereniza os braços onde se vêm alojar, com a periodicidade das estações, mais ramagem que é o chão de onde vêm os doces frutos.
Fazemos vindimas como prova de vida. Descontemos o etnográfico: os operários, que são como curandeiros, amanham com suas mãos marcadas e rudes as vides que pedem alívio. Os turistas extasiam-se com a função. Os operários ganham um ganha-pão. E as videiras rejuvenescem para outra temporada, descamisadas à espera dos rigores do inverno. São de têmpera rija e não reclamam agasalho. Fogem às convenções do clima e da indumentária a preceito. Entregam-se nuas à invernia que estiver para vir.

29.9.14

O Quixote que há nós

In http://midia.iplay.com.br/Imagens/PapelDeParede/018098.jpg
Os (mais) jovens vivem com os pés em cima de um chão de idealismo. Sonham que conseguem ser mudança. No seu diagnóstico das coisas, ainda não há lugar para paredes pintadas a negro nem para batistérios do pessimismo.
Sabem que há coisas que não quadram com a sua perfeição das mesmas. Acreditam que o tempo vindouro pode trazer um ar mais respirável e que as alvoradas serão cachos de uvas tão doces como não há memória. Acreditam que são fator da mudança. Que vão dobrar a asa aos elementos em que medra a inércia, a engrenagem enferrujada que só serve para manter o que se conhece, mesmo que o que se conhece esteja preenchido por vícios estultos. Os (mais) jovens, ainda imberbes, julgam que podem ser Quixotes em causa própria. Que neles se agigantam as forças perenes que têm o condão de derrotar as que se lhes opõem, as forças conservadoras que só querem o estado conhecido por receio do que vier em sua substituição.
E lá vão eles, embebidos em pueril idealismo, convencidos que sozinhos chegam para derrotar as forças cósmicas que deixaram legado no estado das coisas que se conhece. Enquanto estiverem ungidos de ingenuidade, nada os demove. A mudança pode tardar, mas pelo seu punho terá um tempo presente. São fiéis depositários das forças brutas da bondade. Os ventos terçados em sentido contrário são parados quando montam seus cavalos alados e, de espada em punho, despedaçam os ventos que alisam a sementeira da perenidade das coisas que há. A caminho de despedaçarem a servidão que há, enamoram-se por Dulcineias que são feras implacáveis. Desgostam-se, mas não perdem as certezas sobre a bonomia do porvir.
O tempo tratará de os desenganar. Um dia haverá em que sentirão que estiveram este tempo todo à espera de Godot.

26.9.14

Sete chaves

In http://hotsite.diariodonordeste.com.br/diariouploads/uploads/ce3519bfab82d9ea631a7507a210d403.jpg
Sete são as chaves precisas para guardar os segredos que importam. Sete chaves chegam para deixar de fora os intrusos. Com sete chaves selamos a noite. Sete são as chaves que impedem que as lágrimas vertam dos olhos marejados. E são sete chaves que protegem a fortaleza contra os tiranetes que espiolham vidas que não são suas.
Às sete chaves emprestamos ouro. Passam a ser preciosas em funções solenes, em atos preparatórios da grandeza assinalada. Chegam sete chaves. A cada chave, uma empreitada. Uma desencrava a ferrugem que estiver alojada dentro da reentrância por onde entra. A segunda lubrifica a engrenagem, preparando o caminho para a terceira chave, a que roda para o lado a preceito e abre a porta (e depois a fecha, quando o encerramento tiver valimento). A quarta chave fica de reserva, pendida na fechadura caso seja necessário terçá-la para o que aprouver. A quinta chave guarda-se num cofre; é a chave de reserva se as outras se extraviarem. A sexta chave empresta-se a pessoa de confiança. A sétima é a chave-mestra, a rainha de todas.
Não precisamos de envergar as sete chaves. Só precisamos de saber que temos as chaves todas, sete no total, e que à falta de uma, outras se aprestam a fazer a sua função. Tutores das chaves todas, é como se o mundo (que interessa) se ajoelhasse diante de nós. Mas isso não interessa. A jactância não oferece recompensas, a não ser àquela gente de fraca têmpera que ensimesma um orgulho narcísico.
Os espelhos ficam connosco. Não os mostramos a ninguém. Guardamo-los com as sete chaves que recolhemos no cofre de que só nós sabemos o código. Também não interessa se outros há que invejam esta coroa de espinhos. A inveja é uma malícia que assimila as apoquentações da alma. Pertence aos fracos. E nós, imperadores das sete chaves, metemos o mundo (que interessa) na palma das mãos e entrelaçamos-as com as sete chaves que estiverem na algibeira.

25.9.14

A morte que se deixa matar



Mão Morta, "Preces perdidas, in https://www.youtube.com/watch?v=D_3p8jXmbMs
O ateísmo tem impressões digitais. Uma é o incómodo da morte. Pois se não há, para o ateu, vida depois do corpo se extinguir, a finitude é certa. E com a finitude vêm sobressaltos. A morte como cais de chegada, sem terreno por além para esmoutar. A morte como ponto final, sem parágrafo a acenar-se, promissor, por entre um céu luminoso por onde adejam centelhas de sol rompendo entre as timoratas nuvens. A morte como morte. A finitude. Sem amanhã sobrante. Ou idílicos palcos celestiais, nem sequer hipótese menos pueril que são as lembranças que sobrepujam a física finitude. Pois a visão que se toma, indivíduos que somos, é a que vem ao olhar através dos olhos próprios, não pela decantação de olhos outros.
Mas agora, ateu ainda e sem alívio, convenci-me da morte. Pois se não fosse a morte, estes lugares que habitamos estariam congestionados de gente. Se um sortilégio onírico nos trouxesse a imortalidade, havia gente a mais, gente aos caídos, corpos em desuso, pessoas apenas hibernações de si mesmas, ossos alquebrados, a decadência fatal dos Homens. A morte é precisa para levar com ela o fantasma do congestionamento de almas.
Todavia, a morte continua alma penada quando o seu vulto é nossa imediação. Obriga a interiorizar o sentido de tudo. A temer que o tempo afinal seja escasso – ou ainda mais rarefeito que a imagem que temos dele. Mas se a todos acontece, não importa a angústia do óbito. Quando deixamos de contar, é porque a folha do calendário caiu a nossos pés e já nada conta para a extrair ao chão. Fica ali, a errar pelo chão enquanto o vento frio sopra vindo da noite que foi célere. É o cais final, onde o corpo amarra e é levado pela infinitude do vento glacial. O corpo transfigura-se em matéria. Perecível. Vai para lado nenhum, a não ser os despojos, atirados para uma cova lúgubre, ou espalhados ao vento que estiver a preceito, ou vertidas no mar tão largo que não chega, porém, para as cinzas que lá forem acamadas.
Coisa diferente, e que ainda causa angústia, é perceber se o tempo coalhado, o tempo que se inclinou ao chamamento da morte, foi tempo capaz de levar vencimento da vida. Às vezes, é pouco. Quase sempre há de ser pouco. Mesmo quando as velas foram sopradas tantas vezes e delas já não há lugar à memória. Mas quando a morte vier, que se mate a morte pela extinção de tudo o que foi conhecimento. Para, então, a morte deixar de ser inquietação existencial.

24.9.14

Os gestores trendy

In http://www.dinheirovivo.pt/storage/DV/2014/big/ng3308984.jpg
Já não é como dantes. Quando os gestores eram gente cinzenta. Não gostavam do contacto com a maralha, nem queriam ter uma imagem bem posta junto dos cidadãos. Ignoravam a comunicação social, a não ser para efeitos que aproveitassem os negócios. Eram distantes. Misteriosos, até. Não lhes faltava arrogância para manterem as distâncias e apurarem o sentimento de casta, de uma casta imensamente pequena, a que os simples mortais não tinham acesso. Não se lhes conhecia vida privada. Não queriam.
Agora é diferente. Os novos gestores são mais jovens e sorriem, sorriem muito. Cuidam da aparência. São simpáticos. Cultivam a proximidade. É o que mostram quando a imprensa e a televisão batem à porta à procura da sua iluminada opinião. Os Zeinal Bava, Horta Osório, Carrapatoso & companhia irradiam simpatia. Falam com um sorriso como esgar. São modernaços. Nas empresas que gerem, misturam-se com os demais. Não querem um pedestal nem açambarcam arrogância que cultiva o desprezo dos subordinados. Vão aos eventos que cimentam o espírito de grupo entre os “colaboradores” da empresa – sim, “colaboradores”, porque chamar-lhes trabalhadores é marxista e despropositado. Fazem furor no estrangeiro, depois de terem conquistado a palma da gestão no país que ficou pequeno de mais para a sua estatura.
Só que esta simpatia e a proximidade com os da arraia miúda são plásticas Tudo soa a artificial. Os sorrisos, o ar modernaço, o gosto pelas artes, a erudição que não quadra com a tecnocracia em que são militantes, a simpatia que é tão contagiante que dá para interrogar se não é apenas um embuste numa altura em que até para os gestores (e não só para os políticos) conta tanto a imagem cinzelada junto do público.
Às vezes, dá para sentir saudades dos gestores de antanho. Dos macambúzios que assustavam a maralha com o rosto tão fechado, com a antipatia indisfarçável, com a alergia pela simpatia e a denegação do sorriso. É que, ao menos, ali tudo era genuíno.

23.9.14

Destruição criativa

Pond, "Aloneaflameaflower", in https://www.youtube.com/watch?v=LbODngNdZF8
- Ouvi falar em destruição criativa. Somos reféns de paradoxos?
- Tudo tem um contexto. Não podemos ficar presos à literalidade das palavras.
- Mas tu és da área. Como se pode conceber que da destruição, em vez do caos, venha a criação?
- Queres falar de ciência, ou transitar pela linguagem das metáforas?
- Não entendo. Pensei que fosses arrematar a conversa pelos cânones da tua especialidade.
- Mas isto transcende qualquer ciência.
- Não percebo.
- Pois não nos é dado, na rotina da existência diária, a esmagar o que temos por adquirido quando esse adquirido nos desassossega, quando por ele trazemos um rosto sombrio e andamos sonâmbulos pelas algemas do pesar?
- O que me dizes deixa-me inquieto...
- Digo-te que, às vezes, temos de renegar quase tudo. Que essa é uma condição para a reinvenção do ser, ou deixamos de ser e entramos num pântano que devora as forças. E vegetamos, só vegetamos.
- Se é assim com indivíduos, assim será com sociedades?
- E que mais não são as sociedades do que o somatório de todas as vontades individuais, umas alcançando mais protagonismo que outras?
- Como sabemos que um dado momento é a circunstância da destruição criativa?
- Quando as interrogações fervilham e as respostas são nutriente de mais interrogações ainda. Quando parece que não chega a haver alvorada. Quando os pássaros se despojam do canto. Quando os fogos consumiram as serranias que os olhos avistam e a aridez magoa. Quando os pés sangram por serem açoitados pelas pedras que enxameiam o caminho por onde seguem. Quando a canseira é tanta e o sono teima em ser contumaz. Quando o corpo pede outra geografia.
- Então diz-me: que fazemos quando o apelo da destruição criativa falar tão alto?
- Criamos destruição. Seletiva. Ou, em momentos de refundação imperativa, devastadora, sem anelar exceções. Destruímos o que estava criado para do caos salvífico renascer um impulso de criação.

22.9.14

Dar uma mãozinha

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj7REZvjRgOnfxrfXmzyM5IS_D6myw9DiD_9SI_TdwZRGlrq46maKnxJU_tgiCCW6b9P29DQfuGT3apoUNRDKQ9e0YAnVeyhesA48fAXV0ErrXoxOlpTWW8rc56CG-j-yr0odkc/s1600/5+-+DSC03927.JPG
Esta é a adorável sociedade da solidariedade. Ai de quem fugir do seu imperativo social solidário, que logo apanha com o isolamento como castigo. Temos de nos ajudar uns aos outros. Porque, mesmo que hoje da ajuda não precisemos, ninguém sabe se amanhã não vamos dela ficar carentes. À cautela, sejamos solidários. É um pouco como a caridade que (alguns) cristãos fazem querendo paga posterior, em forma de juros do investimento de hoje, num pedaço do lugar celestial reservado aos menos pecadores e aos que mais arrependimentos tenham expiado.
Esta idiossincrasia vulgarizou as facilidades que se requisitam. Dá-se uma mãozinha para que quem dela precise não se afunde nas dificuldades. Pois as dificuldades são uma injustiça que não quadra com a bondade dos deuses. As dificuldades são a fonte das desigualdades que estão fora de moda, em ostracismo. Por isso, temos de dar uma mãozinha porque, de hoje para amanhã, podemos ficar no estado de necessidade de quem precisa de uma mãozinha para se salvar do naufrágio. E assim vamos todos, vogando em cima da frágil jangada, num frágil equilíbrio, em cima de um mar voraz que nos quer devorar.
Mas é só uma mãozinha que se pede. À falta de ser possível encurtar o tamanho da mão para passar a ser uma mãozinha, o diminutivo retrata a imagem da pequena ajuda que basta para as necessidades. Ou o diminutivo é um eufemismo propositado, uma sombra que oculta o tamanho da ajuda que se demanda – afinal, não uma ajudinha, mas uma ajuda de todo o tamanho, como quem pede dez para obter cem. Pede-se uma mãozinha com pudor de pedir a mão inteira. Talvez seja excessivo. E a quem ela é pedida fique perplexo, pois ao dar a mão inteira ficaria pela metade para se salvar das intempéries que o viessem buscar como vítima. E por mais que ser solidário seja imperativo dos bons, ninguém quer sucumbir por ter ajudado outros.
Pedimos mãozinhas uns aos outros, numa interminável cadeia que enlaça a humanidade. Quem falou em puxar lustro aos esforços que vêm de si mesmo, se há tantas mãozinhas ávidas de se lançarem a quem delas precisa? Como é tão belo o espírito solidário.

19.9.14

O murmúrio do almocreve

In http://fotos.sapo.pt/pppeixe/pic/00007xhk
Debandava de terra em terra, mercando os haveres que sobraram do lugarejo de que partira. Envelhecido, os olhos cambavam nas letras que vinham inscritas em papéis, quase incapaz de as decifrar. Até a besta que montava dava sinais de entorpecimento, falhando passo ocasional.
Embebera-se numa profunda acidez. Tanta, que evitava falar com outros. Conhecidos já não tinha, ficaram para trás enquanto errava numa fuga sem pesar. Era ele e a rês que o transportava no dorso. A besta sua confidente, não estivesse a caminho da mouquidão e andasse desinteressada no que a cavalgadura que o montava tinha para dizer. Era o desgosto que o consumia pela entranhas. Maldizia a desdita, amaldiçoava o dia em que o mundo tivera o sobressalto de o ver nascer. Enxovalhado na terra de onde era indígena, fizera-se escorraçado pela calada da noite para não sofrer a humilhação que lhe preparavam. Só teve tempo para reunir uns parcos haveres, sem critério que não fosse arrematá-los para as largas sacolas que pesavam no bucho do burro.
Dormia ao relento. Uma ou outra vez encontrava umas moedas que compravam uma noite em cama de pensão insalubre. Murmurava durante a lenta viagem. Com a cabeça arqueada sobre a crina do burro, como se estivesse e expirar culpas de antanho que só agora tiveram reconhecimento. O velho carcomia-se com os ventos invernais que começavam a sentir-se. Tossia, cada vez mais. Doíam-lhe os ossos, que a invernia precoce, com dilúvios constantes, tratara de aguçar. Um dia soubera que a empreitada doravante era um dia de cada vez. Aguentava-se melhor a rês, testemunha daquele infortúnio. Não tinha falta de conversar com outras almas. Era como se houvesse mister de carregar uma peregrinação solitária. Só faltara cozer os lábios para que os outros se certificassem do voto de silêncio.
O inverno, que entrou troante no calendário, foi testemunha dos andrajos em que se tornou a derradeira indumentária que não tinha sido roubada a meio da noite por uns ganapos endoudados. Mas ele sabia que não havia precisão de novas vitualhas, quanto menos de novas vestimentas. O velho burro aqueceu-o com o bafo na noite em que os primeiro flocos de neve pousaram no chão frio. Do resto, não tem lembrança.

18.9.14

Queremos flores


In http://wallpaper.ultradownloads.com.br/49035_Papel-de-Parede-Crisantemos-Sortidos--49035_1440x900.jpg
Não vamos às lágrimas, que as flores espalhadas pela casa são antídoto. Não vamos soçobrar na indiferença, no letargo que abjura a grandeza que somos. A nós, as flores. Todas as flores. Reinventamos as flores, se preciso for, para emprestar ao mundo a recriação das formas, das cores, dos aromas. Não são de mais as flores que abraçarmos.  Elas são um lampejo da luminosidade de que somos candeias. Atravessamos as serras e as planícies com as flores no dorso, à lapela de uma orelha, como se fôssemos hippies esotéricos, sem o sermos. Atravessamos os rios que dobram os vales em cima de tapetes feitos com as flores que alojamos no bornal. Vêm os tempos madraços e matamo-los com os crisântemos esplendidos pendidos sobre uma jarra feita de simplicidade. Espreitam os vasos que alojam as plantas carnívoras, mas sobre elas vertemos as flores que apascentam o sossego das almas, e as plantas fazem-se vegetarianas. Subimos ao dorso do cavalo alado, metemos as mãos na crina dourada e guiamo-lo com o perfume das rosas silvestres. Entregamos as chaves que selam o dilúvio num aquário cheio de peixes, num aquário onde as algas foram substituídas por flores adaptadas ao meio. E, mesmo debaixo de água, as flores que manipulamos não perdem a essência, rejuvenescem a água com um perfume bizantino. À noite, quando nos depomos nos sonhos que enfeitam o sono, somos tutelados pelas flores que se acotovelam nos móveis, nas janelas, nas fruteiras na soleira da casa, nas pétalas que se despojaram dos caules carnudos e, todavia, não perecem nem perdem qualidades. O chão é um tapete de pétalas, um mosaico de cores que serve de batuta às almas, a crisálida que amacia os ossos para a doce alvorada que virá a seu tempo. Às mãos deitamos flores, com elas lavamos a alma quando precisa de decantação. E se no sono somos tutelados pelas flores, pelo dia passamos a ser seus tutores. Alquimistas que inventam flores novas, cores novas, odores deslumbrantes que nunca alguém sentiu. Sabendo que, pelo tempo fora, é só seguirmos as pétalas que atapetam o chão descoberto pelos nossos pés.

17.9.14

Não deites fora o mel que ficas sem as abelhas

In http://p1.pkcdn.com/abelhas-e-colmeia-guadalajara_24432.jpg
As abelhas. Trabalham como nenhum ser vivo. Organizam-se numa hierarquia social perfeita. Amedrontam e incomodam, quando, desorientadas, esvoaçam sobre as pessoas e querem aferroar. São como os kamikazes japoneses que lançavam ataques suicidas, acreditando que morriam heróis. As abelhas são uma perplexidade. Polinizam as flores e despojam-se dos rudimentos do que haverá de ser mel assim que os favos ficarem a preceito. O doce mel, que compõe receitas populares para resfriados.
Só que às vezes deitamos fora o mel. Mesmo sabendo que o mel não tem prazo de validade. Ou porque o frasco caiu e se despedaçou no chão, entaramelando-se o mel nos fragmentos de vidro pulverizados, inútil o mel derramado no chão. Ou porque, em mudança de uma casa para outra, os potes de mel ficam para trás entre os pertences fadados ao desperdício. Não devíamos ser apicultores. Mas devíamos, ao menos, aprender com as abelhas.
Ao calhas, terçamos as armas que são nossa futura sepultura. É como deitar fora o mel. Nunca sabemos se o porvir não vem reclamar a perda. E como depois não podem os arrependimentos recuar ao tempo focado, dá-se como irremediável a perda. Não sabemos os danos que vêm depois. Não sabemos se o mel deitado fora é o mel derradeiro. Pois as abelhas, ultrajadas, podem ficar exangues, perecendo uma atrás da outra. Até que as colmeias sejam dizimadas numa autofagia causada por quem se desapossou do mel. Quando as abelhas já nem espécie extinta forem, damos com a impossibilidade do mel.
Oxalá a lucidez não se embote entre a penumbra das resoluções sem razão. Oxalá deixemos o mel quieto na prateleira, onde o pote de barro que o resguarda apanha a poeira que sinaliza o esquecimento. Mal por mal, antes o mel esquecido. Ao menos, existe. O mel deitado fora é uma perdição insanável. As abelhas soçobram a seguir. Pois deixam de ter serventia. Não podemos ser os algozes das abelhas. Cabe-nos guardar o mel como se fosse sagrado.

16.9.14

Areias movediças

In http://www.viajecomigo.com/wp-content/uploads/2014/01/IMG_2236-300x225.jpg
Apanhou o elétrico que descia a encosta até beijar as águas douradas do rio. Ia quase vazio. A sinfonia maquinal abafava a conversa das outras pessoas que viajavam no elétrico. Um casal de turistas reformados não tinha nada para dizer – selaram o silêncio ao longo de toda a viagem, talvez estivessem habituados a adestrar o silêncio como moratória do concubinato. Uma varina ia mais à frente, a meter conversa com o condutor da carruagem. Pela pose, dir-se-ia oferecida ao homem donairoso que tinha mão no elétrico, adivinhava-se conhecimento de outras datas.
A mulher insinuava-se. O condutor hesitava entre a atenção ao trânsito e a curvilínea mulher, apesar das muitas fazendas esconderem as formas do corpo. Pudera saber ler os lábios, para decifrar a palratório animado, melhor: o quase monólogo, pois o homem quase não falava, não se sabe se por zelo da função ou se por ela ser uma fala-barato que colonizava o espaço da conversa. O homem coçou o nariz e, de cá de trás, sem entender a conversa mantida em surdina pelo ruído do elétrico, percebeu-se que tinha consorte legalizada pelo matrimónio (era o que a aliança mostrava).
Os olhos do homem descaíam para um palmo abaixo do queixo da varina, onde a camisa de flanela estava provocantemente desabotoada até à embocadura dos seios avantajados. Estava provado: a varina apanhou o elétrico para provocar o desejo do condutor. É que ela devia ir para a alta da cidade, onde àquela hora outras varinas mercam peixe fresco. Ela ia ao contrário do negócio. Ou, talvez, o seu negócio fosse de diferente estirpe – e andasse em demanda de uma alma que lhe dissolvesse o dilaceramento da viuvez extemporânea.
No fim da linha, continuava a observar o enlevo. Saiu toda a gente, só ficaram os três (o narrador na posição de observador interessado). O condutor exercitou as rotinas e entreolhou pelo retrovisor à cata de passageiros distraídos que não tivessem dado conta do fim da linha. Estava o observador, a fazer de conta que estava distraído. Disse-lhe para sair. Anuiu. Escondido à janela do café mais próximo, viu o condutor do elétrico a escrever algo num papelinho retirado de um bloco que estava no bolso de dentro do casaco. Seria o número do telefone. À tentação, irresistível. A varina saiu e foi à vida, transportava um olhar brilhante. O condutor fez a pausa do fim de linha, tirou um cigarro, mudou a haste do elétrico para inverter a marcha e fumou vagarosamente, o olhar perdido do horizonte. Um olhar febril e perplexo.
Não sabia se tinha entrado em areias movediças.

15.9.14

O angariador de votos

In http://aventadores.files.wordpress.com/2013/09/pocilga.jpg
E se, na empresa onde trabalhas, andasse um indivíduo do aparelho socialista a educar, insistentemente, os colegas de trabalho para se inscreverem como simpatizantes nas eleições diretas que a seita vai fazer? E se, na empresa onde trabalhas, essa pessoa tivesse o topete de convencer o voto num dos camaradas em compita? E se, na empresa onde trabalhas, o capataz do aparelho tirasse da manga um trunfo sórdido ao assustar os colegas de trabalho com a perda do emprego se não lhe fizerem a vontade?
Não é na América Latina. É com o PS de Portugal. É numa empresa em Portugal. Talvez o militante esteja habituado ao baixo caciquismo do partido dele. Talvez: pois se até mortos têm as quotas de militante atualizadas, o impossível deixou de ser impossível. Mas é neste Portugal latino-americanizado que uns agiotas de ideias acham legítimo vir para o trabalho fazer propaganda eleitoral. Só de si, já era lamentável. O diagnóstico piora quando o safardana morde nas canelas dos colegas, persistente que é, para irem ao sítio da Internet da agremiação e se inscreverem como simpatizantes, à força. Se vem um não como resposta, devia sobrar a vergonha do trauliteiro e meter a viola no saco. Mas não. Insiste. Talvez acreditando que a melhor tática é vencer os relutantes pelo cansaço.
Porventura não faz parte da civilização (que julgamos ser) o respeito pela liberdade de escolha. Quando o angariador de votos peregrina, incansável, a tentar convencer os outros, mostra a cepa de que é feito: intolerância pura, que se alimenta da falta de respeito pela intimidade dos outros. Porque há quem, candidato a eleições ou assumido militante de uma agremiação que procura votos, não faça questão de esconder a sua escolha. Estão no seu direito. Tal como o estão aqueles que guardam para a mesa de voto o segredo da escolha. A liberdade de escolha merece o respeito que sequazes como este não percebem. Não faz parte do seu código genético. Pobre democracia, que arrastas os teus ossos por esta decadência.
Até hoje não fui vítima deste assédio eleitoral. Não sei se é por ser público o meu ódio de estimação (as palavras foram bem ponderadas antes de serem escritas) à seita socialista. Ou se é de, a uns dias da grande festa eleitoral, estarem inscritos cento e cinquenta mil “simpatizantes” – um magro um e meio por cento dos eleitores, fraco desempenho para quem está em pulgas para voltar a pôr as patas no ouro do poder. Só sei que talvez, pela primeira vez, vá engolir um sapo de todo o tamanho. E vote na coligação do mau governo que é o do momento. Como se fosse um voto com os pés em sentido invertido: para evitar que os que se babam pelo poder lhe deitem a mão. Entre um que é mau e outro que é ainda pior, pode ser necessário fazer uma escolha. Mesmo que seja contrariada.

12.9.14

Contamos todos

In https://urbanfragment.files.wordpress.com/2012/10/election-crowd-wellington-new-zealand-1931-photographed-by-william-hall-raine.jpg
Ninguém é desperdício. A ninguém é reservado o papel da inutilidade. Aos que logram existir, por mais que pareça que não, há um lugar no mundo. Um lugar qualquer. Não, não vou dizer que é destino divino que se cumpre. A existência há de transcender as leis divinas (para o caso de elas nem serem se não uma ilusão), pois é de uma simplicidade maior.
Não aceitemos que a sobranceria dos que se julgam predestinados, aqueles a quem teria sido oferecida uma candeia que ilumina mais que tudo o resto, faça julgamentos sumários que desestimam vidas alheias. Antes um suposto inútil que mil prescientes desta igualha. Ao menos, o suposto inútil é precatado, humilde, pouco dado a medir a existência dos outros. Confiável na sua lhaneza. Sabe que a sua vida é um vasto território com muitas demandas por preencher. E como acontece o tempo ser um bem escasso, o suposto inútil dá uma lição de palmatória aos predestinados que por aí adejam: os outros pouco interessam – e só interessam na medida em que algum deles venha em articulação com quem assim pensa.
Os supinos iluminados, que se julgam lídimos letrados, donos de uma inteligência deslumbrante, são canhestros na coroa em que se autoinvestiram. Pois contamos todos neste mundo. Em diversos papéis, nas mais múltiplas circunstâncias que possa haver, em todos os tempos em que há matéria viva a ser e a pensar. Todos contamos. Desde os que são acantonados, pelos eruditos crânios, no lugar do desperdício. Até aos arrogantes maestros do conhecimento que se fazem donos do lugar de julgadores da valência alheia. Passando pela imensa maioria dos outros, a massa anónima que não merece a desatenção e o ultraje dos da inteligência suprema, nem consegue (ou não quer) pertencer ao escol que vomita esta intolerância que é pequenez mental.
Contamos todos. Cada alma desaproveitada é menos um lugar preenchido. Uma peça, por mais pequena que seja, que sempre faz falta. Pois não pode haver ninguém neste mundo, nem mesmo os que vegetam imersos numa indigente solidão, cuja ausência não seja notada.

11.9.14

Vamos com a maré que a noite traz


Craig Armstrong, "Let's Go Out Tonight", in https://www.youtube.com/watch?v=tWj1AboQZU0
Arruma o sono. Traz na boca o seu adiamento. Que temos uma maré lá fora, uma maré noturna, de atalaia à espera que dela sejamos testemunhas. Vamos por ela, a noite furtiva, sem sermos vultos clandestinos. Vamos por ela, enlaçados no veludo que tomou conta das mãos. Sem rumo. Por onde nos apetecer. Parando em apeadeiros lustrosos, onde as luzes sejam um oráculo do devir que somos. Apetecendo olhar para o luar que parece maior que o céu, vamos subir ao promontório para estarmos mais perto da lua. Vamos bebê-la, à lua que se não abotoa nas nuvens que tingem o céu. Vamos às orações que vêm das nossas entranhas, consagradas com um cálice de vinho de ouro. Apalavramos a noite e ela devolve-nos a sua quietude em forma de árvore frondosa diante dos olhos, a árvore onde metemos as mãos que nela se fazem suas raízes. Abraçamos o caule que vem da terra, sentimos o odor da terra que entretanto se molhou com uma chuva estival. Continuamos a demanda. Erramos sem destino, porque esse é o destino que escolhemos. Saciamos a vontade de sermos plenos, frontaria férrea que ampara os alicerces, à prova de terramotos. E sorvemos a frescura do ar quando a alvenaria das casas começa a esbranquiçar mal o sol espreita na alvorada. Não demos conta do tempo passar. É o maior triunfo que levamos. Pois da existência guardamos os olhos que marejam com as palavras ditas, as palavras que são tiradas à medida da pele que se arrepia. Deixamos a noite para trás enquanto o sol se faz alto. Olhamos para trás do ombro e vemos que as ruas por onde passamos ficaram debruadas a ouro. Pode ser que outros consigam recolher as flores que oferecemos à soleira das casas. Pode ser que conheçam, então, a quimera que vem do apelo da maré da noite. Com ela vamos e na madrugada depomos os vestígios das ruínas que medravam no sono inquieto. Agora que viemos da bênção da maré noturna, somos inteiros e recíprocos nos sonhos. E sabemos que os sonhos já não são uma alquimia; fomos nós que abraçamos a alquimia. Nós somos essa alquimia.

10.9.14

A intimidade já não é o que era

In http://d3thflcq1yqzn0.cloudfront.net/020935474_prevstill.jpeg
Uns famosos metem fotografias íntimas numa “nuvem virtual”. A rede global, que tem umas falhas de segurança, não é à prova de bisbilhotice e de gente mal intencionada. E as fotografias que se queriam íntimas passam para o domínio público. Acessíveis aos olhos de quem as quiser ver. Deixam de ser pertença da intimidade.
Mas, em bem pensando, quem, no seu juízo, corre o risco de ver devassada a sua intimidade? Há gente que não se importa de confundir intimidade (própria e dos outros) com matéria que interessa à comunidade global. Não vejo nada de errado, pois cada qual gosta do que lhe apetecer. Desde que a comunidade voyeur não se incomode quando a sua intimidade deixar de o ser, pois de outro modo não há paga igual por gostarem de ver a intimidade dos outros pelo buraco da fechadura. Em não havendo mal em que cada um faça o que bem entender com a intimidade que é sua, mal haverá se os que convidam ao voyeurismo alheio ficam assarapantados quando descobrem que a sua intimidade passou para o domínio público.
Aos que correm riscos, a consciência das capacidades para intuir consequências. Uma intimidade que vai para a rede global deixa de ser intimidade. Imediatamente. Não é preciso que alguém consiga espiolhar as grutas cavernosas da rede global para encontrar essa intimidade. Chega ela ser acervo da rede global para já não ser intimidade – mesmo que ninguém tenha interesse em abocanhar um naco dessa intimidade. É que ninguém pode garantir que, em sendo anónima gente, ninguém se interesse pela sua intimidade. Eu digo que as pessoas que são tão transparentes, tão transparentes, que fazem da sua existência um livro aberto (diria: escancarado) aos olhos outros, já perderam de vista o significado de intimidade. Há quem teça um novelo moralista advertindo os voyeurs do avesso que deviam ter vergonha e não vir para a praça pública expor a sua intimidade.
E a mim, não sei se incomoda mais a leviandade dos que abjuram a sua intimidade, os moralistas datados apontando o dedo censurador aos que esboçam um esgar de horror ao saberem o que se sabe da sua intimidade na rede global, ou o moralismo que me ataca por deplorar os faroleiros da intimidade própria e os ratos de sacristia (de diversas sacristias) que pregam lições de moral.

9.9.14

O burgesso fino

In http://uploads2.wikiart.org/images/edouard-manet/the-monet-family-in-their-garden-at-argenteuil-1874(1).jpg
Tem as mãos inchadas de tantas notas ostentar. A abastança contrasta com o pardieiro de onde vem de origens. Trepou a escada do êxito. Teve olho para o negócio. E prosperou.
Começou a conviver com gente endinheirada. A imitar comportamentos. Se a linhagem dos abastados era o perfume do consumo requintado, o burgesso tinha de se aprimorar na fineza. Observador, começou por anotar comportamentos à medida que alimentava as borlas que os finos de fino recorte precisavam. Anotou o que diziam os das famílias endinheiradas e seu séquito, o que comiam, onde comiam, os temas de conversa, as vernissages obrigatórias, os objetos de ostentação, a roupa que distinguia a seita, as artes que passou a frequentar. O problema é que o berço humilde, miserável até, não deixava esconder as lacunas por onde escorriam os lapsos de língua, os lapsos de postura, os lapsos, apenas lapsos, que revelavam a terrível vacuidade em que medrava.
Fazia-se transportar em potente bólide, nem que as mãos e os pés muitas vezes não soubessem domar a potência sobredotada. O bólide passou a ficar guardado na garagem para o fisco não desconfiar dos sinais exteriores de riqueza e não o interrogar pelos parcos réditos declarados. Documentava-se, contudo, para poder intervir nas conversas de salões onde os ricos trocavam impressões de amador sobre as proezas ao volante de quem a conta bancária numa offshore permitira a compra do brinquedo. Fazia gala de amesendar em restaurantes de fino recorte gastronómico, onde se serviam à mesa os parcos repastos que faziam gala aos modismos gastronómicos do momento. O pior da transfiguração foi a dieta durante os outros dias, pois uma rechonchuda personagem não quadrava com os círculos distintos onde também havia conversas sobre as iguarias degustadas, forma física a custo e amantes proletárias  e submissas.
Ele e a consorte socializavam nos círculos das artes. Iam às óperas, mal conseguindo esconder o bocejo prolongado a sinalizar a precisão do intervalo. Iam às exposições, onde os ricaços competiam no arrematar de obras de arte como quem competia na comprovação de façanhas sexuais. Arrematou alguns quadros impressionistas. A consorte achava que a palete de cores combinava com a decoração da mansão. Nunca se lhe ouviu uma palavra hermenêutica acerca dos quadros que, por falta de espaço, passaram a preencher as paredes frias da garagem onde hibernava o bólide de elevada potência. Como se fazia constar que tinha atribulações com a gramática no discurso falado, teve lições privativas com eméritos professores. Ensinaram-lhe gramática, sintaxe, figuras de estilo e truques para manter um discurso com fio condutor e sem atropelos à língua nativa. Também aprendeu a jogar golfe.
E, tudo isto, sem que embolsasse grande prazer. Eram os imperativos da socialização com a casta de endinheirados. Às vezes, ao deitar, entrava na antecâmara dos sonhos, escorregava para o pretérito do novo rico em que se transformara. E sonhava com gastronomia popularizada, a motoreta e as viagens com o ar a esborrachar-se no rosto gordo, a música de arraial, um mundo sem pintura indecifrável, as férias no sul pejado de turistas ingleses, a boçalidade em forma de palavra e de gesto, a adiposidade a mais que, todavia, dispensava sacrifícios das dietas. Mas não podia decair. Os pergaminhos tinham sido ganhos a tanto custo, não podia decair. O mundo em simulacro era o seu habitat natural.