19.9.14

O murmúrio do almocreve

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Debandava de terra em terra, mercando os haveres que sobraram do lugarejo de que partira. Envelhecido, os olhos cambavam nas letras que vinham inscritas em papéis, quase incapaz de as decifrar. Até a besta que montava dava sinais de entorpecimento, falhando passo ocasional.
Embebera-se numa profunda acidez. Tanta, que evitava falar com outros. Conhecidos já não tinha, ficaram para trás enquanto errava numa fuga sem pesar. Era ele e a rês que o transportava no dorso. A besta sua confidente, não estivesse a caminho da mouquidão e andasse desinteressada no que a cavalgadura que o montava tinha para dizer. Era o desgosto que o consumia pela entranhas. Maldizia a desdita, amaldiçoava o dia em que o mundo tivera o sobressalto de o ver nascer. Enxovalhado na terra de onde era indígena, fizera-se escorraçado pela calada da noite para não sofrer a humilhação que lhe preparavam. Só teve tempo para reunir uns parcos haveres, sem critério que não fosse arrematá-los para as largas sacolas que pesavam no bucho do burro.
Dormia ao relento. Uma ou outra vez encontrava umas moedas que compravam uma noite em cama de pensão insalubre. Murmurava durante a lenta viagem. Com a cabeça arqueada sobre a crina do burro, como se estivesse e expirar culpas de antanho que só agora tiveram reconhecimento. O velho carcomia-se com os ventos invernais que começavam a sentir-se. Tossia, cada vez mais. Doíam-lhe os ossos, que a invernia precoce, com dilúvios constantes, tratara de aguçar. Um dia soubera que a empreitada doravante era um dia de cada vez. Aguentava-se melhor a rês, testemunha daquele infortúnio. Não tinha falta de conversar com outras almas. Era como se houvesse mister de carregar uma peregrinação solitária. Só faltara cozer os lábios para que os outros se certificassem do voto de silêncio.
O inverno, que entrou troante no calendário, foi testemunha dos andrajos em que se tornou a derradeira indumentária que não tinha sido roubada a meio da noite por uns ganapos endoudados. Mas ele sabia que não havia precisão de novas vitualhas, quanto menos de novas vestimentas. O velho burro aqueceu-o com o bafo na noite em que os primeiro flocos de neve pousaram no chão frio. Do resto, não tem lembrança.

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