2.9.14

Uma tesoura muito afiada

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As tesouras estavam com as hastes abertas, até ao máximo que a flexibilidade deixava. Uma tinha ferrugem. A outra parecia nova. Mas era a primeira que cortava a preceito. Talvez tivesse sido amolada há pouco tempo. A nova, talvez por ser nova, ainda tinha as lâminas por estrear. Não estava adestrada para a função.
E a função, naqueles propósitos, exigia uma tesoura muito afiada. Uma tesoura que não deixasse aparas, pois os vestígios eram prova dos danos semeados algures. Era daquelas coragens cheias de tibieza. Falava como poucos. Enchia o peito de ar e prometia devastação por onde passasse, polémica com quem fosse antagonista, terramotos de emoções, pois não deixava as coisas pela metade. Mas na altura de deixar o seu selo, preferia o anonimato. Preferia as palavras ambíguas, porque era menos custoso deixá-las preparadas para serem entendidas nas entrelinhas. Por isso precisava de uma tesoura muito afiada. Para pegar nela em luvas de pelúcia, esquartejar onde lhe aprouvesse e deitar-se no remanso da noite sem a aflição que era a sua vidinha desinteressante. Precisava que a tesoura afiada deixasse remorsos. Não era um acesso de bondade, nem cuidava de apalavrar o arrependimento; era só para se esquecer da sua triste existência. Por isso procurava desdenhar dos outros. Fazia gala em ridicularizá-los. Empenhava o melhor latim e a pérfida estratégia para fazer mal aos outros. A tesoura cuidava da função.
Era como se a tesoura fosse espetada com um golpe seco e fundo. Pelas costas, como convém a estes corajosos de latrina que se escondem na bravura que não pode ser (por falta de aviso) contraposta pelas vítimas. Afiada a tesoura na mó do merceeiro, não demorava a fazer estragos. Atacava sem que as vítimas dessem conta. Quando metia a tesoura na carne das vítimas, abria as tenazes e rodava-as de um lado para o outro, o mais fundo que conseguisse. Era um golpe fatal. Excitava-se com o sangue a esvair-se.
Paramentava-se a preceito. Escolhia a melhor roupa. Depois da barbárie, ensanguentava a fatiota como medalha da proeza. A tesoura não ficava enfaixada no corpo da vítima. Não podia deixar provas da aleivosia. Mas o mais importante era guardar a tesoura, o sublime troféu que trazia dos corpos inanimados de quem era algoz. Era troféu e promessa de novas maldades. Essas, que eram ânimo para o sono que já não era contumaz.

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