4.9.14

Tudo a preto e branco

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Era tudo dicotómico. Uma coisa e o seu contrário. Em radicais opostos. Uma afirmação continha sempre uma negação: o que se afirmava era a negação do seu exato contrário. Os olhos tinham bússolas que os faziam disparar de um lado para o outro. Só eram capazes de estugar o olhar para os lados opostos, sem saberem como travar o passo a meio, ou algures longe de uma das extremidades.
Não havia tolerância no vocabulário. Nem cores, só o preto e o branco. As metades, não necessariamente iguais, terçavam armas. Sem repouso. Eram mercados argumentos, ardis irrefutáveis, animosidades que depressa iam pelo valado da violência. E ninguém parecia ter aprendido com a história, ela toda manchada de sangue derramado e de óbitos inúteis em nome (dizia-se, para enganar os tolos) de causas divinas, patrióticas, homéricas, ou sebastiânicas, sempre na lógica de uma coisa e do seu irreconciliável contrário.
Mal dos líricos que procuravam um ponto de encontro entre as radicalidades, dos que queriam inventar mínimos denominadores comuns só para aplacar a ira dos opostos. Desses líricos não sobrava muito tempo: eram odiados pelos funestos tutores dos opostos desembainhados. Ao menos conseguiam essa harmonia: nem uns nem outros deles gostavam. Pagavam cara a ousadia. Como não eram preto nem branco, estava-lhes destinado o exílio de onde amanhavam a solidão, acorrentados à elusiva diferença. Eram apóstatas, uma ralé que nem sequer era reconhecida pelo arremedo de conciliação que podia desaguar numa desconhecida serenidade. Não: o que importava aos sacerdotes dos opostos sem freio era manter as diferenças, renegar o outro (aleivosamente chamado inimigo), dobrar-lhe o braço à primeira oportunidade, para triunfalmente erguer o queixo ao alto, esvoaçar os estandartes com o escudo fundacional bordado, e ostentar a superioridade da fação. Alimentavam-se deste desabitado espírito guerreiro. Os do branco exaltavam a alvura, cada vez mais purificada. Os do preto decantaram todas as impurezas que embotavam o breu da indumentária. Não havia pontes possíveis.
Entre a carnificina ignóbil, que ia cavando sepulturas que envenenavam o chão, um punhado de dissidentes descobriu as cores. Clandestinos, ungiram o ar com a alegria furtada aos rostos sorumbáticos dos que teimavam em pastorear o preto e o branco.

1 comentário:

Museu Nacional de Soares dos Reis disse...

Imagino o tempo a avançar pelas ruas do mundo (muitas delas feitas de “asfalto humano”) como uma câmara inquieta. Um tempo amordaçado que, por vezes, já nem sabe qual é o seu papel… Creio que é nesses momentos que o tempo elege as mãos de alguém e nas suas linhas escrevinha o que captou – um rascunho do indizível - pois sabe que essas mesmas mãos o vão revelar sem magoar as palavras … esse néctar.