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Apanhou o elétrico que descia a encosta
até beijar as águas douradas do rio. Ia quase vazio. A sinfonia maquinal
abafava a conversa das outras pessoas que viajavam no elétrico. Um casal de
turistas reformados não tinha nada para dizer – selaram o silêncio ao longo de
toda a viagem, talvez estivessem habituados a adestrar o silêncio como
moratória do concubinato. Uma varina ia mais à frente, a meter conversa com o
condutor da carruagem. Pela pose, dir-se-ia oferecida ao homem donairoso que
tinha mão no elétrico, adivinhava-se conhecimento de outras datas.
A mulher insinuava-se. O condutor
hesitava entre a atenção ao trânsito e a curvilínea mulher, apesar das muitas fazendas
esconderem as formas do corpo. Pudera saber ler os lábios, para decifrar a palratório
animado, melhor: o quase monólogo, pois o homem quase não falava, não se sabe
se por zelo da função ou se por ela ser uma fala-barato que colonizava o espaço
da conversa. O homem coçou o nariz e, de cá de trás, sem entender a conversa
mantida em surdina pelo ruído do elétrico, percebeu-se que tinha consorte
legalizada pelo matrimónio (era o que a aliança mostrava).
Os olhos do homem descaíam para um palmo
abaixo do queixo da varina, onde a camisa de flanela estava provocantemente
desabotoada até à embocadura dos seios avantajados. Estava provado: a varina
apanhou o elétrico para provocar o desejo do condutor. É que ela devia ir para
a alta da cidade, onde àquela hora outras varinas mercam peixe fresco. Ela ia
ao contrário do negócio. Ou, talvez, o seu negócio fosse de diferente estirpe –
e andasse em demanda de uma alma que lhe dissolvesse o dilaceramento da viuvez
extemporânea.
No fim da linha, continuava a observar o
enlevo. Saiu toda a gente, só ficaram os três (o narrador na posição de
observador interessado). O condutor exercitou as rotinas e entreolhou pelo
retrovisor à cata de passageiros distraídos que não tivessem dado conta do fim
da linha. Estava o observador, a fazer de conta que estava distraído. Disse-lhe
para sair. Anuiu. Escondido à janela do café mais próximo, viu o condutor do elétrico
a escrever algo num papelinho retirado de um bloco que estava no bolso de
dentro do casaco. Seria o número do telefone. À tentação, irresistível. A
varina saiu e foi à vida, transportava um olhar brilhante. O condutor fez a
pausa do fim de linha, tirou um cigarro, mudou a haste do elétrico para
inverter a marcha e fumou vagarosamente, o olhar perdido do horizonte. Um olhar
febril e perplexo.
Não sabia se tinha entrado em areias
movediças.
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