28.11.14

O ditador de sacristia, o preso preventivo e as meretrizes da rua escura

In http://www.autoblog.pt/wp-content/uploads/2012/12/pneu-furado.jpg
Um pneu furado, uma visita à oficina e um mecânico sexagenário com necessidade de mandar cá para fora estados de alma.
- Sabe?, estou farto da realidade. Ao almoço, a minha neta pediu-me para ver os desenhos animados. Nem pensei duas vezes. Era isso ou o noticiário. – disse-me o mecânico enquanto ajeitava na máquina o pneu descarnado.
- Pois, isto anda mal. (Ou não, depende da perspetiva – pensei com os botões interiores, não fosse o homem um encarniçado devoto do mais famoso preso preventivo da história judicial.)
- Já viu? Estes gajos, não lhes chega o poder? Não chega mandarem? Ainda por cima, abarbatam-se com pipas de massa. No tempo da outra senhora, isto não era possível.
- Consta que Salazar não gostava de prazeres materiais. Mas olhe que não tínhamos liberdade... – retorqui, percebendo a necessidade de conversa que o mecânico tinha, antes de ser interrompido:
- ...O único problema do Salazar era aquela coisa da PIDE. Mas nunca me faltou liberdade. Até lhe digo mais: naquela altura, eu e os meus amigos íamos à rua escura...sabe como é...e andávamos por lá à vontade. Se lá for agora arrisco a ficar sem a camisa.
O tempo foi providencial. O pneu estava composto e a roda foi devidamente apertada no lugar. A conversa terminou ali. Depois, as palavras do mecânico ficaram a pairar sobre o pensamento. Numa improvável ligação de assuntos, o homem conseguiu unir na mesma conversa o ditador de sacristia, o mais famoso preso preventivo e as meretrizes da rua escura (ou a ida às ditas cujas, um evento rotineiro, ao que consegui perceber). Ao observador desatento, o achamento seria insólito.
É disto que adoro nas conversas humanas: a teia que se tece entre assuntos que não parecem rimar uns com os outros. Quando a lição vem de um homem sem instrução (tinha feito a quarta classe), percebe-se que temos muito a aprender com os mais velhos que são apóstolos da lhaneza de espírito. Por exemplo, que há um comportamento de meretriz no que julgávamos ser proxeneta (da nação).
Era só isto: apeteceu-me mostrar um pedaço de costela esquerdista (que não tenho).

27.11.14

Novecentos e onze


Caribou, "Our Love", in https://www.youtube.com/watch?v=IMwgcRByA8Y
Novecentos e onze dias depois, a centelha continua ávida. Os olhos enfeitiçam-se com as palavras dóceis. As mãos não deixam de se entrelaçar. Uma fatia maior do mundo está no nosso regaço. A janela da alvorada testemunha o mar de que somos timoneiros. E, novecentos e onze dias depois, consagram-se esses e os outros, muitos mais, dias que se perfilam no horizonte do tempo. Deixando o fogo da centelha a fermentar nas mãos suadas. Deixando a vertigem num apogeu que nunca é definitivo, o apogeu à espera de um desafio mais alto que vem à medida que a sede do tempo vindouro faz esgotar os dias presentes. Novecentos e onze dias valem por quase todos os outros que ficaram atrás deles. O tempo que se desembainha no porvir só pode ser uma jornada promissora. Não se calem as vozes que adestram palavras que se embelezam nas nossas bocas. Não deixemos que o tempo seja poltrão; vamos a ele, com a crina nas nossas mãos e as rédeas cientes da nossa vontade. Porque os novecentos e onze dias são um garrote deste tempo todo: parece que foram menos, mas esses dias todos sabem a muito mais do que novecentos e onze. Tiramos à sorte o desfado pretérito – antes de termos começado a contar novecentos e onze e os outros, muitos mais, que haveremos de meter ao bolso da memória. Aquela é uma medida do tempo irrelevante. A nossa é que conta. Onde somos reis de um império de que só nós sabemos as fronteiras. Onde o sol não se põe se essa for a nossa vontade. Onde as palavras se entoam no canto melódico das estrofes que compomos mesmo sem alinhavarmos poemas. Pois a nós vem o que em nós é desejado. Sem importar a medida do tempo. Sem peias. Sem dar atenção às importunações que são devolvidas aos tiranos do desassossego. Um dia que seja nosso mede-se por meses, ou até por anos, da altura do tempo dos outros. Somos a nossa própria clepsidra. Onde somos água frondosa e fresca que dá de beber à luminescência das coisas. Os novecentos e onze são dias debruados a ouro de puro quilate. Uma lição sem préstimo, a não são para quem a merece: nós, tutores dos novecentos e onze dias, e da plenitude que veio com eles.

26.11.14

Sortilégio outonal

Ryuichi Sakamoto, "Forbidden Colours" (solo piano), in https://www.youtube.com/watch?v=Y4tLtg-DMb8
O outono mete um punhal nos pactos. É como se estivesse em constante faina contra a erosão dos elementos, retardando as folhas caducas a que as árvores estão fadadas. Teimoso, devolve a riqueza das cores sortílegas que vestem as árvores. Não é senescência; é pura beleza, as cores ocres pintando quadros que enfeitiçam o olhar quando ele esbarra nas extensas paisagens que são um manto acobreado. É outono. É o outono.
As cores ocre rimam com os dias plúmbeos. Aquele tempo que entristece as pessoas vãs que só têm saudades da infernal canícula estival e dos infindáveis soalheiros dias que são a combustão de uma larga monotonia. Os dias taciturnos combinam com a folhagem que fica dourada antes de se quebrar e as folhas sem préstimo encontrarem sepultura nas ruas que são subúrbios das árvores. Mas antes do desnudo, elas ficam galantes, numa madurez altiva a fazer lembrar que o envelhecimento não é uma fulgurante decadência. Quando os dias outonais acolhem um lampejo de sol, o acobreado da folhagem cintila como se estivesse a sorrir ao tempo que há de ser transfigurado na aspereza invernosa. As folhas que vão sendo desgastadas à medida que ganham tons dourados não se entristecem. Não pedem comiseração, como se os olhos compungidos, talvez temerosos do demoníaco inverno que se anuncia, chorassem lágrimas vetustas pelo verão que afinal disse adeus há tão pouco tempo.
Enquanto a acalmia dos elementos despoja o desassossego das tempestades furiosas, os olhos detêm-se, demoradamente, nas árvores que se engalanaram com o traje outonal. Saciam-se no sortilégio das cores que embaciam a fulgurância que vem com as folhas viçosas semeadas pela primavera. Cores que são um mantimento para a alma. Uma tela onde se compõem poemas com estrofes que vão à seiva que ainda circula nos vasos sanguíneos das folhas enrugadas. Não, não há vertigem quando os elementos depõem a madurez das formas e das cores. Nem resignação quando se congraça o andamento dos tempos com as formas que se moldam em correspondência.
Tudo tem um tempo que é seu. Madraços são os que, embebidos de uma nostalgia datada, recusam reconhecer o tempo que é.

25.11.14

National Geographic

The Cure, "Hanging Garden", in https://www.youtube.com/watch?v=yEH5jReEkSk
O animal acossado não capitula. Enraivece-se, faz das fraquezas as forças imperativas para sobreviver. Sente-se acossado. À medida que as fronteiras do cerco se estreitam, fica de atalaia. Dia e noite. Todos os outros animais são potenciais inimigos. Já não põe contar com ninguém. Foi obrigado a aprender: na luta pela sobrevivência, os que ficam sob ameaça do cutelo perdem amigos. Os olhos bem abertos podem não chegar para despertar para o logro em que alguns o podem querer atirar.
A estreiteza do território onde se esconde torna presente o odor dos que querem ser seus algozes. Implacáveis serão, implacável terá de ser se quem o perseguir ficar sob mira. O sobressalto contínuo despoja o sono. Não é preciso, o sono, nos tempos árduos em que dormir pode ser o definitivo sono. O animal esconde-se. Sabe que está ferido, que sangra. Deixa vestígios que facilitam a empreitada dos perseguidores. Ouve-os em cantorias que parecem rituais de captura. Parecem abutres famélicos à procura de carcaça pútrida. Para lá chegarem, dão caça, noite e dia, ao animal ferido.
Não interessa que outrora tenha sido animal respeitado no habitat local. O oportunismo é o decaimento das almas que se tornam impuras. Se calhar, a ingenuidade embacia o olhar: de outras vezes, animais entronizados haviam caído em desgraça e quase ninguém veio em seu socorro. O animal acossado, que dantes participou no banquete dos vitoriosos, desconfia que lhe montaram uma armadilha soez. Mas, como é feroz, como tem as garras bem afiadas e os dentes preparados para morder fundo na carne dos algozes que se achegarem, não desiste. Enfraquecido pela ferida, persiste na demanda. Não se atemoriza pelo cerco que se aperta. Procura outros esconderijos, improvisa-os entre os arbustos molhados, escavaca grutas que depois dissimula com galhos de árvores. Um dia de cada vez, que cada dia que passa é o triunfo maior, à espera de outro que se segue na linha do tempo.
Mas o cerco estreita-se. Já não é só o cheiro dos carrascos. Vê-os, primeiro à distância, mas nota-os mais por perto. Não tem fuga. Ainda tem forças para a peleja com os primeiros que conseguem encontrá-lo. Encarniçado, espumando a raiva dos animais que antecipam o momento final, sente que tem forças que nunca soube ser possível sentir. Açambarca-as. Precisa delas para ir derrotando os funestos algozes que saltarem a cerca que o separa da ignomínia dos que o querem morto. Mas nada é perene. As forças esgotam-se. Enfraquecido, o olhar dirige-se ao animal que o encontra exangue. Um olhar de comiseração, que não teve serventia. Os algozes eram muitos e tinham fome de vingança. O animal deixou de ser feroz. À hora da morte, dócil criatura que se entregou às garras e aos dentes dos esfaimados carrascos. A lei da natureza. Da natureza que se renova.
Podia ser o National Geographic. Ou de como um animal político, feroz outrora, passou à história sem glória.

24.11.14

O que ainda não foi dito sobre os vistos gold

In http://mlb-s1-p.mlstatic.com/monreale-lindo-pingente-chupeta-de-ouro-18k-8430-MLB20004053649_112013-O.jpg
(Aviso às pessoas sensíveis: texto com algum potencial pornográfico)
Umas perguntas perturbaram-me quando este governo inventou vistos para milionários: por que se chamam vistos gold? Veio em Diário da República com o adjetivo em língua inglesa? O que levou as autoridades a usarem o adjetivo em inglês se não há problemas com a tradução da palavra para português? (Ainda se fosse marketing, ou bail out, ou upgrade – ou qualquer outro tecnicismo que emprega o inglês como língua franca e não dá uma tradução confortável para o idioma-mãe.)
Eu tenho uma explicação: lá no ministério onde isto foi inventado andam com o imaginário preenchido com filmes XXX. Lembraram-se de premiar magnatas de duvidosa origem com liberalidades de circulação desde que investissem no pátrio território. Os vistos especiais tinham de levar com um rótulo diferente, um rótulo sugestivo das condições especiais em que são passados. Ora, os magnatas que querem visto especial têm cartões de crédito dourado, tanta a abastança que alimenta as suas contas bancárias. “Bingo!”, terá exclamado o criativo de serviço no ministério da tutela: “vamos chamar vistos dourados”. Ao que um muito circunspecto, mas todavia lúbrico, superior hierárquico contrapôs: “isso soa mal. Soa a coisas menos próprias que vêm em filmes menos próprios.” (Mas que, todavia, ele conhece.) “Vamos antes chamar...vistos gold.
Talvez nunca um nome (se retirarmos o esconderijo da palavra inglesa) tenha retratado tão fielmente uma decisão de um governo. Pois não é que a ideia dá cobertura a uma obscenidade? Não vale a pena esgrimir a imagem do burro e da cenoura, para não ofender os magnatas que querem ostentar um dourado visto emitido pelas autoridades portuguesas. O que não lembra ao diabo, é as autoridades darem caução a possíveis lavagens (lá está, outra vez, o conteúdo pornográfico a vir ao de cima) de dinheiro de magnatas sem escrúpulos quando compram moradias e apartamentos de luxo só para darem uso legal a dinheiro ganho por ilegais meios e meterem a mão num visto especial. E depois vem o ministro da tutela, um conservador de velha cepa – portanto: em teoria, avesso a devassidões e outras imoralidades – justificar que os meios justificam os fins (angariar investimento, não interessa se tem duvidosa proveniência), explicando às criancinhas, com aquela pose de ensinador dos incautos, que não vem mal ao mundo quando um governo patrocina esta obscenidade.
Depois percebi: a prostituição já conta para calcular o PIB.

21.11.14

Os outros (II)


Massive Attack, "Paradise Circus", in https://www.youtube.com/watch?v=6F9pydomWOE
“O paraíso são os outros”, Valter Hugo Mãe
Ou o oposto (do texto anterior): podem os outros ser o paraíso e, por eles, desaguarmos na decadência ao darmos conta das nossas limitações? Não vale a pena ir pela puerilidade do Hugo Mãe (nem sequer valeria a pena ir pelos escritos do Mãe, mas isso fica para outras núpcias). Só uma historieta banal, em jeito de conto de fadas narrado aos petizes que se julga estarem no ponto zero do conhecimento, podia afivelar a lição de que somos nada se não reconhecermos que em tudo dependemos dos outros. É pena: que o lirismo dos encantadores de crianças esbarre no farol do tempo, quando o tempo certifica a idade adulta e os petizes deixaram de o ser e seguem pelos antípodas do bom rapaz (e da boa rapariga).
Mas é nos outros que podemos ver a bitola que queremos adotar. É um ato de humildade. Uma abnegação do ser que exige – ao contrário do que possa parecer – muita autoestima. E uma dose elevada de probidade mental, pois na voragem do tempo moderno, em que o ensimesmar é fatal e o narcisismo medida que sobreleva o tamanho das gentes, a tirania do orgulho impede o desassombro de ver no outro paradigma que não custa imitar. Sem que, todavia, a identidade seja perdida. Se não, passamos a ser meros émulos desprovidos de vontade, uma acintosa imagem do que supúnhamos ser.
Os outros são um espelho. Para o bem. E para o mal. As medidas que tiramos não obedecem a um padrão objetivo; são a cura atilada do subjetivismo. E porque os outros são diferença pura, servem como esteio da subjetividade que aumenta a estatura do ser. Oxalá não fôssemos, às vezes, instruídos no cárcere da objetividade, nessa impureza que os tiranetes insinuam. Não há melhor eufemismo para a colagem do pensamento às margens do necessariamente igual, ou de como a autonomia da vontade é espezinhada.
Pelo tamanho dos outros, vemos a nossa diferença. Medimos a rebeldia que é virar do avesso e ser fiel aos cânones da diferença. Pois nos outros bebemos as palavras que não encontramos em nós, aprendemos sentidos que nos eram áridos, vamos pelos dedos das artes que eram um prodigioso, mas desconhecido, território. Os outros é que são um paraíso (entre outros).

20.11.14

Os outros (I)


Marilyn Manson, "Torniquet", in https://www.youtube.com/watch?v=MmfQ7gSaJgM
“O inferno são os outros”, Jean-Paule Sartre
O que são os outros? São corpos estranhos. Entidades alienígenas, alguém com quem não se pode contar, equinócios da imprevisibilidade. São um punhal que entra fundo na carne quando sobre eles deixamos que seja a confiança a falar e, depois, damos conta que devia ser a desconfiança a fazer de fiel da balança.
Os outros são (descontadas as baias das generalizações, sempre falazes) matéria pútrida. Os outros só são aqueles que não habitam em nós – e esses são muito poucos, esses são outros que são um pedaço de nós. De fora dos que habitam em nós sobra um território árido, como se não houvesse oxigénio a abastecer a respiração. As palavras dos outros são ditas, mas nunca sabemos se elas são a expressão do que vem nelas sentido. Dizem, os curadores do pessimismo antropológico, que os outros são a bainha das traições. Dizem, confiantes em si mesmos, que nunca somos fautores de traições a nós mesmos – mas não estou convencido deste convencimento absoluto.
À medida que nos encaminhamos da despersonalização dos outros, sentimos que o abismo não mora longe. Sabemos, ou pelo menos desconfiamos, que os outros são uma incógnita. São o nosso inferno, a matéria-prima das desilusões, o fermento para a descrença, as balsas que albergam o pirronismo, o nosso avesso – ou o avesso do que julgamos ser. Somos a antítese dos outros. A singularidade do ser que esbarra na nebulosa homogeneidade que são os outros (mesmo que neles vejamos tanta diferença que alcança matéria heterogénea). Se aos outros fica reservado o papel do inferno, a cada um de nós, na feérica singularidade que é nossa impressão digital, o estatuto deificado. Não somos entidades divinas quando nos opomos à feiura de espírito dos outros; somos apenas a lhaneza do contraste, embebidos na matéria gorda de que nos queremos desprender. Pois a nós cabe o lugar celestial, de onde somos julgadores dos outros que são entidades soezes.
Só falta termos um espelho para a autocontemplação no exercício deste sumptuoso papel.

19.11.14

Mãos molhadas


Sol Seppy, "Slow Fuzz, in https://www.youtube.com/watch?v=wd27YI1Es3Q
A terra está molhada pela chuva que vem do inverno antes do tempo. O chão ensopado convoca o resguardo. O vento enfurecido ajuda. Mas as mãos querem beber os nutrientes da terra molhada. Querem saber a que sabe o molhado da terra. Querem meter-se no chão amolecido, mexer os dedos entre as pedras encharcadas que dão alicerce ao chão. Querem trazer a terra molhada à superfície para a dar a provar aos sentidos: ao olhar, que congraça o sortilégio da chuva ao emprestar uma forma barrenta ao chão que no estio foi pétreo; ao odor, quando o nariz se achega aos vestígios de terra molhada que escorregam dos dedos e inspira, lentamente, o seu perfume. É lá que está a têmpera de um lugar. É na terra molhada que se congemina a geografia dos espaços, que se anunciam os sedimentos das plantas e das árvores que emprestam forma à paisagem, é dela que vem o ADN das gentes. As mãos mergulham outra vez na terra encharcada. Não se intimidam com a impureza que as lentes da aparência depressa diriam ao verem as mãos metidas na terra cheia de lama: ao contrário, o que de lá vem, envolvendo a pele fria, é a pureza do lugar de que as mãos são tutoras. Uma exegese do ser, do mais profundo do ser. É como se as mãos andassem em demanda de um esteio que metesse o corpo na lealdade de um lugar. Pois já não há espaço, nem tempo, para sedentarismo. Não: as mãos não capitularam aos primeiros sinais de envelhecimento. As mãos, ainda que se encurvem a sinais de rugas, continuam jovens. A cura veio da terra molhada que as assentou, enquanto lá fora se fazia sentir o uivo do vento que adestrava a tempestade. O corpo está todo molhado. Mas reinventado. A noite já não é um torpor, ou um desassisado templo onde sussurram fantasmas inteligíveis. Agora, tudo é claridade. E nem é preciso que a noite venha tingida pela lua que, grandiosa, se põe alta no céu.

18.11.14

Arautos da desgraça

Trent Reznor and Peter Murphy, "Reptile", in https://www.youtube.com/watch?v=Elbsomblod4
Deve ser uma dor lancinante, abrir os olhos à alvorada e ser consumido por uma azia terrível. Deve ser deprimente olhar em redor e apenas ver as cores baças, tingidas pela sombra negra dos abutres famélicos que apenas esperam por depois do estertor. Deve ser uma consumição inteira desfiar o pessoal oráculo para pressagiar desgraças e mais desgraças, cataclismos, maldades, procrastinação das coisas boas que, decerto, pertencem a mundos outros que não este.
São os profetas da desgraça. Devem ter pesadelos hediondos todas as noites. Não se lhes deve conhecer um sorriso, uma palavra de conforto, um elogio (a não ser, talvez, quando se fitam no espelho e gabam tamanha capacidade de presciência). Adivinho que não ouvem música, não sabem o que é um poema, imarcescíveis que estão numa densa nuvem de pessimismo, os olhos ramelosos expelindo uma untuosa excrescência que é a detestável ceifa com que mondam a eira em que medra o mundo.
À semelhança dos olhos ramelosos, o raciocínio em que baseiam o oráculo (ou será ao contrário?) é uma latrina. Tal como as latrinas, é lugar pouco recomendável. E por mais que a paisagem em redor, no que aos homens e mulheres com o baraço da decisão diz respeito, seja um lugar árido, ou um poço com água contaminada, ler e ouvir os arautos da desgraça faz logo ter saudades dos mindinhos que ensinam a mandar do alto da sua inaptidão. E eu, que ando enamorado pela falta de pessimismo (uma fase – talvez), revolvo-me pelas entranhas de cada vez que a acidez destila ao esbarrar nas prédicas dos comensais da desgraça. Porque não queria (não quero) ser profeta da desgraça dos profetas da desgraça. É que de tanta desgraça profetizada, ao menos sobra a ideia de que o lugar que habitamos não é tão inabitável como estas viúvas carcomidas pela azia vomitam.
Antes um escarro do mundo, por pior que ele seja, do que (fosse possível) um parágrafo de doces palavras dos arautos da desgraça.

17.11.14

O senhor Sidónio Palhares fez uma OPA às esmolas da corte

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiI2V6c-hcI9qqopfmmYIR6MEeKCgWceRowbWquIwsqCyrRY9mu7BhyL8SFixTGsF4XcfKTKwSPwPi3PAYEkuJVj72ZlTKFRapTZLAWveqIgydKIF57T7oC_Kq3RcDiddbD1V2t/s320/mendigo.jpg
Sete cães a um osso – diz o povo, quando a concorrência entre os pretendentes a uma coisa qualquer é tanta que logo torna a coisa apetecível. E quando há sete cães ao osso, não se joga no tabuleiro da cortesia. A concorrência afivela os sentimentos selvagens que percorrem o instinto da gente. Vale tudo, menos os escrúpulos.
Sidónio Palhares ensaiou estes pensamentos dispersos quando, na soleira da porta onde pedia esmola aos transeuntes, lia o jornal gratuito que recolhera na estação do metro. Ele havia tanta gente a querer comprar a PT que ela devia ser mesmo valiosa. Uma espécie de joia da coroa, ou rapariga tão voluptuosa que muitos a queriam ter. Na página seguinte, Sidónio Palhares leu que alguns senhores bem pensantes estavam indignados – que não tinha jeito perdermos uma joia da coroa, que o governos estava mancomunado com interesses económicos estrangeiros, que o governo era traidor à pátria por querer vender coisas tão valedouras a preço de saldo.
O senhor Palhares voltou aos pensamentos iniciais, porventura lembrando-se dos tempos áureos em que fora professor e ensinara princípios de filosofia aos petizes. Agora, tudo era diferente: os andrajos que o protegiam da invernia, a barba descuidada, o cabelo desgrenhado, as botas rotas, a fome atalhada quando calhava, o sono ao relento sob a proteção de um cobertor de cartões – era a sua condição. Virou pedinte, não teve outra solução. Uma série de infaustos acontecimentos fez com que nem a família quisesse saber dele. Estava sozinho no mundo, imerso na profunda miséria.
No dia seguinte, foi à sede da PT. Vinha apresentar uma OPA à PT. Na portaria, chamaram os seguranças para meter o senhor Sidónio Palhares na rua e, assim, na ordem. Ele esbracejava, berrando que tinha no bolso da gabardine encardida as garantias bancárias que se exigiam para registar a operação. Para não perder a paciência, um dos gorilas foi ao bolso da gabardina e tirou um papel amarrotado. “É isso, é isso! Veja esse documento!”, disparou, excitado, o senhor Palhares. Vinha lá tudo. Um banco árabe passara uma garantia a confirmar que o senhor Sidónio Palhares, mendigo ali presente na sumptuosidade dos seus andrajos, queria comprar a PT. Por uns milhões largos de euros. Toda a gente ficou apreensiva. Não sabiam se haviam de levar a sério o papel, se deviam desconfiar em Sidónio Palhares, ou se deviam metê-lo na vara de sete gumes onde já estavam os sete cães dispostos a roer o osso.
O caso fez notícia. O senhor Palhares continuou a ser quem era, a aparecer como era, andrajoso, esfaimado, melancólico, sujo. E um dos pretendentes à joia da coroa.

14.11.14

Não há algemas que valham

JP Simões, "Gosto de me drogar", in https://www.youtube.com/watch?v=EpZiRMSs-pc
Não peçam para ser cão de guarda. Não peçam para acenar mimeticamente a cabeça, dizendo sim quando convém e não quando o não for o mote da conveniência. Não peçam para abdicar. Não há lugar para mercar ideias que arrimam ao cais sem selo de garantia. A consciência não deixa. É que, depois, as dores de consciência não atormentam se não quem delas se condói. E eu não gosto de dores de consciência. Prefiro alinhavar as palavras destravadas; ao menos, delas sei soarem a coerência.
Não peçam para adestrar cornucópias escuras se eu gosto é de cores. Não peçam para ser zelador de um lugar por onde campeiam coisas ininteligíveis, que só posso amanhar os laivos da loucura que acometem ao meu ser. Não peçam para ser testemunha das ilusões alheias. Não peçam para ser ornamento de funerais alheios. Não peçam para seguir um guião não feito pelas próprias mãos, não peçam se o guião tirou medidas que são descaminhos dos meus. Não peçam para me trair. E não peçam para meter um freio na descompostura das ideias quando ela sobe à superfície e sobra um olhar virado do avesso.
Não. As algemas são um lugar desconfortável para estar. Elas amarram a vontade. Tornam acintosa a metamorfose contra a vontade. Fazem dos aprisionados um logro de si mesmos. Porque eles sabem que há algemas e devem ser expeditos a delas debandar. Não peçam, pois, para ser fautor das próprias algemas que são a traição a mim mesmo. Prefiro ser dado como desaparecido, prometido ao esquecimento. Não será tão pungente como ser virado do avesso com as pinças da vontade contrariada.
Não me peçam para ser um arremedo do que não sou. E não digam que a vida é um teatro eterno em que representamos papéis do que não somos, papéis que temos de representar porque os papéis que nos são dados são a imagem da possibilidade. Porque, em lavrando semelhante sentença, serei a maior corrupção de mim mesmo, ou apenas uma imagem disfarçada do que sou em mim. A vergonha em pessoa. E essa é uma dor que não quero trazer debaixo do braço.