18.11.14

Arautos da desgraça

Trent Reznor and Peter Murphy, "Reptile", in https://www.youtube.com/watch?v=Elbsomblod4
Deve ser uma dor lancinante, abrir os olhos à alvorada e ser consumido por uma azia terrível. Deve ser deprimente olhar em redor e apenas ver as cores baças, tingidas pela sombra negra dos abutres famélicos que apenas esperam por depois do estertor. Deve ser uma consumição inteira desfiar o pessoal oráculo para pressagiar desgraças e mais desgraças, cataclismos, maldades, procrastinação das coisas boas que, decerto, pertencem a mundos outros que não este.
São os profetas da desgraça. Devem ter pesadelos hediondos todas as noites. Não se lhes deve conhecer um sorriso, uma palavra de conforto, um elogio (a não ser, talvez, quando se fitam no espelho e gabam tamanha capacidade de presciência). Adivinho que não ouvem música, não sabem o que é um poema, imarcescíveis que estão numa densa nuvem de pessimismo, os olhos ramelosos expelindo uma untuosa excrescência que é a detestável ceifa com que mondam a eira em que medra o mundo.
À semelhança dos olhos ramelosos, o raciocínio em que baseiam o oráculo (ou será ao contrário?) é uma latrina. Tal como as latrinas, é lugar pouco recomendável. E por mais que a paisagem em redor, no que aos homens e mulheres com o baraço da decisão diz respeito, seja um lugar árido, ou um poço com água contaminada, ler e ouvir os arautos da desgraça faz logo ter saudades dos mindinhos que ensinam a mandar do alto da sua inaptidão. E eu, que ando enamorado pela falta de pessimismo (uma fase – talvez), revolvo-me pelas entranhas de cada vez que a acidez destila ao esbarrar nas prédicas dos comensais da desgraça. Porque não queria (não quero) ser profeta da desgraça dos profetas da desgraça. É que de tanta desgraça profetizada, ao menos sobra a ideia de que o lugar que habitamos não é tão inabitável como estas viúvas carcomidas pela azia vomitam.
Antes um escarro do mundo, por pior que ele seja, do que (fosse possível) um parágrafo de doces palavras dos arautos da desgraça.

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