Nick Cave and the Bad Seeds, "We No Who U R", in https://www.youtube.com/watch?v=tjF57zEbxpI
O cidadão exemplar estava preparado para
dar os tijolos necessários para cimentar o grupo a que pertencia. Sabia que
havia discussões espúrias; calava-se, sufocava as ideias que viessem à espuma
do pensamento se soubesse que elas vinham contra a maré. De que valia ser rebelde
se a rebeldia o deixava isolado, se as provocações indispunham tanta gente (contra
ele)? Queria repouso. Queria viver os dias por diante no remanso da sua vida
plácida. Outros foram os tempos de indomável irreverência. Agora habituara-se à
reverência dos poderosos, pois nada podia contra os poderosos. A consciência –
ah, a consciência! – afeiçoa-se.
Agora vestia o pensamento pelos cânones.
Domesticara-se. Aprendera a ser como os outros, aqueles que dantes acusava de
capitularem perante a doentia normalidade. Mas de que adiantava ser um
adiantado no tempo se as vanguardas não traziam compensações – como dizer, sem
ofender os cânones, que hipotecar-se perante a bestunta materialidade pode ser
malquisto? – materiais. Agora era um cidadão exemplar. Comprava os jornais do
sistema pela manhã, para aprender a dizer sim ao sistema. Votava nos partidos
do sistema, naqueles que davam mais garantias de vitória e que conservavam o
conservadorismo sempre harmonioso. Ajudava nas causas sociais. Para que não
viessem as dores de consciência, nem fosse outra vez acusado de sociopatia, era
voluntário nas causas diversas que convocavam a consciência social. Até já dava
esmolas (sem ser a oportunista esmola aos arrumadores de carros).
Deixara de fumar. Deixara de beber.
Deixara-se de outros viciosos hábitos tão malvistos pela sociedade das
apoquentações dos outros. Foi adotado pela sociedade; tinha de fazer suas as
apoquentações dos outros da sociedade que o adotara. Não dizia impropérios no
trânsito. Não ocorriam pensamentos desdenhosos quando esbarrava em pessoas que
o arreliavam sem que soubesse porquê, a não ser que eram existências que o arreliavam.
Passou a acreditar em deus(es). E perdeu as insónias todas. Num centro
comunitário de apoio aos desvalidos, tomava em mãos a sua experiência de vida.
Ensinava-a aos que vinham em demanda de ajuda. Mostrava como ele fora e como os
em demanda de ajuda não deviam ser. Era uma lição pela antítese. Se ele mudara,
todos podiam.
Agora, era tudo rosas perfumadas, céus
cintilantes, dias soalheiros (mesmo em tempo plúmbeo), rostos sorridentes,
pessoas adoráveis, edifícios belos, toda a música melodiosa, palavras ideários.
Uma página virada. Todas as páginas viradas: um livro, todo ele novo, à espera
de ver as vivazes páginas dedilhadas através das mãos novas.
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