28.11.14

O ditador de sacristia, o preso preventivo e as meretrizes da rua escura

In http://www.autoblog.pt/wp-content/uploads/2012/12/pneu-furado.jpg
Um pneu furado, uma visita à oficina e um mecânico sexagenário com necessidade de mandar cá para fora estados de alma.
- Sabe?, estou farto da realidade. Ao almoço, a minha neta pediu-me para ver os desenhos animados. Nem pensei duas vezes. Era isso ou o noticiário. – disse-me o mecânico enquanto ajeitava na máquina o pneu descarnado.
- Pois, isto anda mal. (Ou não, depende da perspetiva – pensei com os botões interiores, não fosse o homem um encarniçado devoto do mais famoso preso preventivo da história judicial.)
- Já viu? Estes gajos, não lhes chega o poder? Não chega mandarem? Ainda por cima, abarbatam-se com pipas de massa. No tempo da outra senhora, isto não era possível.
- Consta que Salazar não gostava de prazeres materiais. Mas olhe que não tínhamos liberdade... – retorqui, percebendo a necessidade de conversa que o mecânico tinha, antes de ser interrompido:
- ...O único problema do Salazar era aquela coisa da PIDE. Mas nunca me faltou liberdade. Até lhe digo mais: naquela altura, eu e os meus amigos íamos à rua escura...sabe como é...e andávamos por lá à vontade. Se lá for agora arrisco a ficar sem a camisa.
O tempo foi providencial. O pneu estava composto e a roda foi devidamente apertada no lugar. A conversa terminou ali. Depois, as palavras do mecânico ficaram a pairar sobre o pensamento. Numa improvável ligação de assuntos, o homem conseguiu unir na mesma conversa o ditador de sacristia, o mais famoso preso preventivo e as meretrizes da rua escura (ou a ida às ditas cujas, um evento rotineiro, ao que consegui perceber). Ao observador desatento, o achamento seria insólito.
É disto que adoro nas conversas humanas: a teia que se tece entre assuntos que não parecem rimar uns com os outros. Quando a lição vem de um homem sem instrução (tinha feito a quarta classe), percebe-se que temos muito a aprender com os mais velhos que são apóstolos da lhaneza de espírito. Por exemplo, que há um comportamento de meretriz no que julgávamos ser proxeneta (da nação).
Era só isto: apeteceu-me mostrar um pedaço de costela esquerdista (que não tenho).

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