20.11.14

Os outros (I)


Marilyn Manson, "Torniquet", in https://www.youtube.com/watch?v=MmfQ7gSaJgM
“O inferno são os outros”, Jean-Paule Sartre
O que são os outros? São corpos estranhos. Entidades alienígenas, alguém com quem não se pode contar, equinócios da imprevisibilidade. São um punhal que entra fundo na carne quando sobre eles deixamos que seja a confiança a falar e, depois, damos conta que devia ser a desconfiança a fazer de fiel da balança.
Os outros são (descontadas as baias das generalizações, sempre falazes) matéria pútrida. Os outros só são aqueles que não habitam em nós – e esses são muito poucos, esses são outros que são um pedaço de nós. De fora dos que habitam em nós sobra um território árido, como se não houvesse oxigénio a abastecer a respiração. As palavras dos outros são ditas, mas nunca sabemos se elas são a expressão do que vem nelas sentido. Dizem, os curadores do pessimismo antropológico, que os outros são a bainha das traições. Dizem, confiantes em si mesmos, que nunca somos fautores de traições a nós mesmos – mas não estou convencido deste convencimento absoluto.
À medida que nos encaminhamos da despersonalização dos outros, sentimos que o abismo não mora longe. Sabemos, ou pelo menos desconfiamos, que os outros são uma incógnita. São o nosso inferno, a matéria-prima das desilusões, o fermento para a descrença, as balsas que albergam o pirronismo, o nosso avesso – ou o avesso do que julgamos ser. Somos a antítese dos outros. A singularidade do ser que esbarra na nebulosa homogeneidade que são os outros (mesmo que neles vejamos tanta diferença que alcança matéria heterogénea). Se aos outros fica reservado o papel do inferno, a cada um de nós, na feérica singularidade que é nossa impressão digital, o estatuto deificado. Não somos entidades divinas quando nos opomos à feiura de espírito dos outros; somos apenas a lhaneza do contraste, embebidos na matéria gorda de que nos queremos desprender. Pois a nós cabe o lugar celestial, de onde somos julgadores dos outros que são entidades soezes.
Só falta termos um espelho para a autocontemplação no exercício deste sumptuoso papel.

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