Sol Seppy, "Slow Fuzz, in https://www.youtube.com/watch?v=wd27YI1Es3Q
A terra está molhada pela chuva que vem
do inverno antes do tempo. O chão ensopado convoca o resguardo. O vento
enfurecido ajuda. Mas as mãos querem beber os nutrientes da terra molhada.
Querem saber a que sabe o molhado da terra. Querem meter-se no chão amolecido,
mexer os dedos entre as pedras encharcadas que dão alicerce ao chão. Querem
trazer a terra molhada à superfície para a dar a provar aos sentidos: ao olhar,
que congraça o sortilégio da chuva ao emprestar uma forma barrenta ao chão que
no estio foi pétreo; ao odor, quando o nariz se achega aos vestígios de terra
molhada que escorregam dos dedos e inspira, lentamente, o seu perfume. É lá que
está a têmpera de um lugar. É na terra molhada que se congemina a geografia dos
espaços, que se anunciam os sedimentos das plantas e das árvores que emprestam
forma à paisagem, é dela que vem o ADN das gentes. As mãos mergulham outra vez
na terra encharcada. Não se intimidam com a impureza que as lentes da aparência
depressa diriam ao verem as mãos metidas na terra cheia de lama: ao contrário,
o que de lá vem, envolvendo a pele fria, é a pureza do lugar de que as mãos são
tutoras. Uma exegese do ser, do mais profundo do ser. É como se as mãos
andassem em demanda de um esteio que metesse o corpo na lealdade de um lugar. Pois
já não há espaço, nem tempo, para sedentarismo. Não: as mãos não capitularam aos
primeiros sinais de envelhecimento. As mãos, ainda que se encurvem a sinais de
rugas, continuam jovens. A cura veio da terra molhada que as assentou, enquanto
lá fora se fazia sentir o uivo do vento que adestrava a tempestade. O corpo
está todo molhado. Mas reinventado. A noite já não é um torpor, ou um
desassisado templo onde sussurram fantasmas inteligíveis. Agora, tudo é
claridade. E nem é preciso que a noite venha tingida pela lua que, grandiosa,
se põe alta no céu.
1 comentário:
(Porque acabei de reler um livro que me fez lembrar este texto …)
“ELOGIO DA MÃO”, Henri Focillon
“Empreendo este elogio da mão como quem cumpre um dever de amizade”.
“(…) é preciso mais do que o olhar; são necessárias as mãos para que se produza uma experiência do universo capaz de arrastar o espírito e fazê-lo travar contacto com o peso das coisas”.
(…)
“A possessão do mundo exige uma espécie de faro táctil. A visão desliza pelo universo.
A acção da mão define o vazio do espaço e o pleno das coisas que o ocupam”.
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