19.6.15

O relógio adiantado

Mac DeMarco, “Chamber of Reflection” (live in KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=R65wV3K-dw4 
Que terrível o sabor que assomava à boca de cada vez que um sonho de véspera se materializava no teatro que era o mundo à volta. Mas nem sempre eram sonhos que tiravam as medidas ao futuro. De outras vezes, uma premonição deitava-se na pele e, uns momentos depois, a premonição cumpria-se.
Convencera-se, de início, que eram apenas coincidências. Uma qualquer conjugação cósmica, ou qualquer outra explicação, esotérica ou não. Não podia ser predestinado em coisa nenhuma. Logo ele, que a falta de autoestima determinava um apoucamento de si mesmo, ele que se reduzia a uma pequenez que não era (vistos estes atributos de personalidade) lugar onde se sentisse sitiado. Só que as coincidências repetiam-se. Com mais frequência. Não podiam ser (apenas) coincidências.
Começou, com pesar, a admitir que lhe tinham sido dadas algumas capacidades que não estavam ao alcance do comum do mortal. (E como lhe custavam as duas coisas: reconhecer a destreza para as premonições e olhar de fora de si para si mesmo e notar qualquer coisa de sobrenatural.) Nunca o confessou a ninguém. Receava que o vissem como um louco. Ou que escarnecessem dele. Sim, que a má linhagem que creditava à sua pessoa não tolerava escarnecimentos; tudo tinha um limite.
Aprendeu a conviver com os dons adivinhatórios. Ao menos, eram sobre coisas comezinhas. Nunca pressagiara mortes, catástrofes, casamentos, proezas dignas de registo, resultados de contendas várias, os números da lotaria. Eram pequenas coisas. Contudo, grandes ao ponto de o importunarem (ao início). A certa altura, já sorria interiormente quando via confirmados sonhos de véspera ou premonições acabadas de fermentar no forno do pensamento. Já não as considerava atributos não acessíveis ao comum dos mortais. Porque ele era um comum mortal e recusava – isso sim – ver-se em papel contrário. Foi alinhavando uma teoria, só sua e que nunca foi submetida a prova empírica: muitas outras pessoas teriam dons idênticos. Nem que fosse pelo resto, a teoria servia para o sossegar por dentro.
Aprendeu. A ver-se como relógio adiantado, à frente do tempo presente, levantando um bocado do véu do que haveria de vir no tempo vindouro. De coisas comezinhas se tratar, não viria mal algum ao mundo. Não podia este relógio adiantado locupletar o sorriso próprio de uma criança que recusava deixar de ser.

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