Virginia Astley, “I’m Sorry”,
in https://www.youtube.com/watch?v=s3H6ggryHiM
Nos fundos da casa, no seu lugar mais recôndito,
esbatidas as memórias que não interessam. Melhor será chamá-las desmemórias. Pois
a avenida que importa deve estar desimpedida. Polvilhe-se a avenida com a folha
em branco que parafraseia as desmemórias.
E o que são as desmemórias? Elas mareiam nos antípodas
das memórias. Não está em causa dissolver as memórias, quaisquer que sejam as
cores com que venham tingidas, as boas e as más. Trata-se de meter o olhar em
frente, aliviar o peso que teimaria em pesar sobre os ombros não fosse dar-se o
caso de as desmemórias terem metodicamente feito o seu caminho. Arrotear o chão
árido e semear chão depois fértil é empreitada que pode deixar exangue. Exige vontade.
Exige método. Exige descomprometimento. Encontrar uma arrecadação para arquivar
memórias que não passam de um lustro inútil do tempo que teve o seu tempo. É deixar
vir à tona o tempo das desmemórias, como se houvesse um imperativo de desenhar
tudo a partir de uma folha em branco. Como se os olhos se virassem do avesso e
voltassem ao lugar com uma paisagem diferente por diante, com a disposição para
deitar água fria, água pura, sobre a avenida que interessa habitar.
Não, cultivar as desmemórias não é esquecer o tempo de
antanho; nem simular a sua não existência. É deixá-lo inerte nos braços da desimportância. As nuvens sopradas pelos
ventos que insistem em povoar as memórias são um palco de hibernação. Pois as páginas
do livro não se podem prendem a peias que não deixem descobrir as páginas
sucessivas, as que emprestam grandeza à história narrada no livro.
Como prova da não liquidação das memórias, às vezes convém
vir atrás, a uma página ou outra, resgatar o fio à meada, para tornar as coisas
inteligíveis. É aí que as memórias se transfiguram em desmemórias. E por aí se
percebe que a arrecadação onde as desmemórias são arquivadas tem de estar
arrumada.
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