Hercules and Love Affair, “Blind”
(live), in https://www.youtube.com/watch?v=nnb0a-8OIB4
O ator encontra-se na rua com o banqueiro. Conhecem-se, são
figuras públicas. Mas não se conhecem pessoalmente. Os dois param em frente do
quiosque. À sua frente, duas mulheres. A segunda mulher promete levar tempo no
atendimento. Quer recarregar o título de transporte. Depois pede três revistas
cor-de-rosa, para escolher apenas a que mais notícias espalhafatosas. Pelo caminho,
lembra-se que tem a fatura da luz para pagar.
Os dois homens impacientam-se. Mais o banqueiro, pois àquela
hora (fim da manhã), o ator não está em horário laboral. O banqueiro inspira,
profundamente. Começa a bater com o sapato, em sinal de exasperação. O ator, do
fundo da sua funda linhagem esquerdista, e sem impaciência para gastar, deleita-se
com o nervosismo do banqueiro. Diz para si mesmo, em surdina, “espero que a velha ainda arranje mais duas
ou três coisas para pedir.” Pega num cigarro enquanto a mulher procura pelo
cartão do multibanco na caótica carteira, as mãos trémulas não ajudando à função.
Pega num cigarro e volta a falar com o seu pensamento: “pode ser que o senhor banqueiro se incomode com as minhas baforadas de
fumo.”
Os planos saíram furados: contagiado pelo tabaco do
ator, o banqueiro imitou-o. Talvez fosse para aplacar os nervos à flor da pele.
Ato contínuo, o banqueiro pegou no telemóvel e fez uma curta chamada: “estou aqui preso no quiosque. Vou ver se não
me demoro. Diga que a reunião vai começar com atraso. Até já.” A velhinha
consuma a transação. Ao arrumar os papeis e o cartão multibanco, já fazendo
menção de ir embora, recua e pede ao homem do quiosque que lhe dê meia dúzia de
caramelos para as netas e quatro carteiras de cromos da caderneta dos jogadores
de futebol para o neto. O banqueiro tosse. O ator sorri, comprazido com o incómodo
do banqueiro. O ator estava disposto a entoar uma prece para pedir aos deuses
que metessem na cabeça do banqueiro a ideia de pedir ao ator para o deixar ser
atendido primeiro, só para o ator poder dizer que não – não fosse o ateísmo do
ator e a ignorância sobre as rezas.
Por fim, o banqueiro dirigiu-se ao ator: “estou a reconhecê-lo. Quero dar os parabéns
pela peça que está em cena. A peça é formidável. E a sua performance realça a
trama dramática. O encenador escolheu a dedo. Parabéns!” O ator ficou lívido.
Sem palavras. Atrapalhado, e porque manda a boa educação (mesmo quando o elogio
vem de um nefando banqueiro), o ator agradeceu a deferência. Entretanto, outra
velhinha, julgando que os dois homens não estavam à espera de atendimento no
quiosque, passou-lhes a perna e pediu um maço de cigarrilhas.
Sem comentários:
Enviar um comentário