Faith No More, “Easy”
(live), in https://www.youtube.com/watch?v=Kks_fpCzjDE
I
O engenheiro fiscalizava as obras de repavimentação da
avenida quando o olhar esbarrou numa mulher voluptuosa. A mulher correspondeu. Entre
a troca de olhares cúmplices, os dois demoraram-se no sítio onde os olhares se
cruzaram (se não fosse pelo arrepio na espinha, não estariam todo aquele tempo
estáticos num lugar ainda por cima desagradável). Trocaram os números de telemóveis.
Combinaram um jantar. A química desfez-se durante o jantar. O engenheiro soube
que a mulher era astróloga (disse, ufana, “apareço
na televisão e tudo. Nunca me viste?”). O engenheiro, racionalista como há
poucos, sentiu um pedregulho de gelo a deslizar pelo corpo abaixo. Podia lá
enamorar-se de uma astróloga se ele, tão devotamente racionalista, deplora
essas coisas esotéricas? Pagou o jantar e despediu-se da mulher. Para sempre.
II
A menina não parava de pensar no rapaz que conhecera,
dois dias antes, numa livraria na baixa da cidade. Andavam os dois a matar o
tempo com sede das novidades editoriais. Acabaram a lanchar juntos. Ela
acreditava que estas coisas só vinham nos romances baratuchos e, todavia,
estava a passar pela experiência. Afinal, não devia desdenhar dos romances baratuchos.
Mas era outro o sobressalto que a afligia, a ponto de a distrair da aula. Enquanto
rabiscava uma folha de papel em branco e, na mesa do lado, a colega escrevia em
estenografia para não perder pitada da lição, ela só pensava na impossibilidade
daquela paixão. Os camaradas do partido não dariam autorização à relação com um
rapaz de boas linhagens e abastado.
III
A costureira de meia idade, ainda solteira, caiu de paixões
pelo motorista do autocarro trezentos e trinta, que ela apanhava todos os dias da
semana à mesma hora. Nunca lhe deu para tamanha coisa, ela que sempre foi tão
exigente com os homens e nunca se convenceu a casar com nenhum. Mais a mais,
pensou, irritada, já não tinha idade para estes devaneios pós-adolescentes. Um dia
simulou, à entrada do autocarro, a queda dos haveres que vinham ardilosamente
armazenados em três sacos de supermercado. O motorista puxou o travão de mão e
saltou a divisória que separa o posto de condução da porta da entrada, para
ajudar a costureira. Meteram conversa. Que se prolongou no fim da linha
percorrida pelo autocarro. O motorista notou que a costureira foi até ao fim da
linha, ela que costumava sair quatro paragens antes. Ela queria combinar um
encontro depois do expediente do motorista. Este não anuiu. De repente, pôs de
lado a cortesia, até um certo galanteio que estava a dedicar à costureira (ou,
pelo menos, ela assim o entendeu), e respondeu com rispidez: “o meu namorado ficaria muito maldisposto se
eu fosse sair consigo.”
IV
Os amores impossíveis são uma contradição de termos. Se nunca
o foram, a sua impossibilidade não chegou a ser atestada.
Sem comentários:
Enviar um comentário