6.11.15

Impressões digitais

Wand, “Fire on the Mountain”, in https://www.youtube.com/watch?v=gyODysymgdI
1. Um rebanho guardado pelo clérigo da aldeia. Sempre podia arrotar à vontade. Sempre podia entreter-se (e, quem sabe, deliciar-se) com a flatulência.
2. Um rapazola desaustinado faltou às aulas. Não foi para celebrar uma estroinice. Viu uma velhinha a cair desamparada, a bater com a cabeça no chão e a ficar ensanguentada na fronte. Cresceu em responsabilidade: chamou um táxi e levou a senhora ao hospital.
3. Um taxista esperava por clientes que vinham de aviões acabados de aterrar. Ouvia os Einstürzende Neubauten a teorizarem sobre a primeira guerra mundial (ele era entendido em alemão e em história contemporânea; e cultivava a música excêntrica). Levou ao hotel um músico em moda, daqueles que fermentam paixonetas pueris nas adolescentes. Notou o ar contrariado da estrela. A certa altura, o artista pediu para mudar a música. O taxista apeou o rapazola à primeira oportunidade.
4. Um guru das almas, uma daquelas personagens que exercita a generosidade nos outros ao ponto de lhe ensinar o caminho lustroso (como se apascentasse um rebanho, mas só onde constam os apaniguados), caiu na tentação. Foi apanhado num bordel. Quem o defendeu da ira dos seguidores (“não se faz”, protestavam, como se tivessem comprado gato por lebre) foram alguns dos que malsinavam as suas patranhas.
5. O prestigiado académico oferecia opiniões voláteis. Parecia aqueles catedráticos do direito que assinam pareceres consoante quem lhes paga (mau grado a incoerência em que são apanhados). Montado no púlpito do prestígio, não admitia contraditório nem que discordassem dele. Os pergaminhos eram tudo. As divergências, produto do iletrismo.
6. O poeta irradiava humildade. Não recusava uma conversa com um admirador. Não recusava discutir a hermenêutica dos poemas, desde que não fosse com os afamados críticos. Não recusava uma rosa. Não rejeitava ler os esboços de poemas de aspirantes a poetas. Às vezes, reduzia-se a aspirante a poeta.
7. O pároco entregava-se aos prazeres carnais, às escondidas (como soe ser). As senhoras, diligentes, eram convencidas que não se tratava de adultério (era um “chamamento de deus”, parafraseando o pároco nos momentos posteriores ao ato).
8. O cão vadio farejava a comida entre os restos do lixo. Destapou uma bomba abandonada. Mesmo a tempo de a brigada de minas e armadilhas evitar um portentoso atentado. O cão foi à vida. Continuou a ser vadio e faminto. O presidente da câmara, ao saber do feito (narrado por um mirone que passava no local) deu ordens para recolher o canídeo. Era tempo de campanha eleitoral. O edil tinha de aparecer nas televisões a pespegar no cão a comenda de mérito.
9. As torradas estavam mal torradas. E mal barradas de manteiga. O homem, irado porque teve de acordar naquela manhã, perguntou ao empregado do café, em maus modos, se a cozinheira tinha passado mal a noite.
10. A cozinheira padecia de dores de consciência. Ainda não estava convencida que o pecado com o pároco não era adultério e, logo, pecado.

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