Corona, “Já não és o meu
dealer”, in https://www.youtube.com/watch?v=viEvbXsZBPE
Os rapazes, no auge da adolescência e no afã das experiências,
pelejavam pelas raparigas. Estas, por sua vez, já não eram como o bloco soviético
na altura em que, por causa da guerra fria, o bloco soviético era inexpugnável.
As paixonetas multiplicavam-se, com curto prazo de validade. A febril idade
exigia novidade; estar tempo enlaçado à mesma pessoa corrompia a novidade. Mais
a mais, os um pouco mais velhos, procurando ascendência sobre os adolescentes (como
se fosse requisito de afirmação pessoal), passavam mensagem que os doutrinava:
era agora ou depois já era tarde de mais.
No tabuleiro de xadrez em que todas as peças se entrecruzavam,
um pobre rapaz parecia peixe fora do aquário. O coitado esboçara uns versos e,
ingénuo, deu-lhe para contar a um amigo próximo. Foi grande o engano: o amigo
era, afinal, um amigo da onça. Assim que deitou as mãos aos poemas em esquisso,
espalhou pela terra que o rapaz tinha pretensões a poeta. A trupe não demorou a
comentar: “mas quem é que alinha nessa
cena?!”, gracejava uma rapariga emasculada; ou “isso da poesia é para gente anormal. O meu pai disse-me que os poetas
andam todos em médicos dos malucos”, informou um rapaz todo estarola.
O rapaz poeta começou a aprender a estar sozinho mesmo
quando estava rodeado de muita gente. Se já ensimesmava, passou, com o tempo e
o bullying dos outros, a viver como
se estivesse numa dimensão paralela. Para piorar o estado de coisas, o rapaz
que queria ser poeta também tinha hormonas. Mas as raparigas desconfiavam dele,
ou nem sequer atestavam a sua existência. O rapaz via a velocidade alucinante
com que os outros açambarcavam raparigas, como estas iam rodando de rapaz em
rapaz, como se todos os outros fossem uma comunidade em absoluta partilha de
corpos e ele à margem do ecossistema.
Um dia, descobriu que podia aproveitar o jeito para as
rimas. Os outros miúdos andavam enamorados pelo hip-hop. Mudou de visual a preceito: assim como assim, podia deixar
de ser como os outros o viam (uma pequena aberração sem jeito para a estética).
Começou a juntar umas rimas com métrica a preceito. Pôs as rimas em cima de
umas melodias que pagavam direito de autor. Quando apareceu em público para as
primeiras exibições, estava quase irreconhecível. Os miúdos exultavam na plateia
com a performance. Iam ao êxtase com
os versos mais contundentes, sobretudo quando o vernáculo se entaramelava nas estrofes.
Só que uma das colegas do músico e poeta perdeu o entusiasmo. Notou um tique
que o rapaz fazia com os dedos da mão esquerda. Foi para junto do palco para o
examinar com minúcia. Ao perto, a transfiguração fora denunciada.
O artista perdeu um punhado de fãs. Os colegas da escola
não perdoaram que uma quase aberração tivesse subido ao pináculo da
popularidade. Uma delas protestou, com voz indignada: “estas nozes não são para os dentes daquele cromo”.
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