6.12.17

A tatuagem que deixou uma equipa de médicos sem saber o que fazer

Mão Morta, “Gnoma”, in https://www.youtube.com/watch?v=ehdeSeAbfJg    
(Inspirado numa história real)
I
Não ressuscitar”, em tatuagem lancinante no estuário do peito. Porque se não é entidade deificada ungida com o dom da reinvenção da vida. Não. Não se tem esse direito, a menos que se seja jesus. Os médicos que forem chamados ao local da morte, que saibam não lhes ser autorizada a reanimação. Assim ordenam os mandamentos – e os mandamentos não podem ser violados. A fragilidade dos homens, por oposição à irrenunciável grandeza de deus, determina a finitude da vida. Não se pode mudar o curso da maré.
II
Não ressuscitar”, tatuado na nuca, em lugar visível caso seja preciso, mercê da calvície apurada. Porque a vida é una. Uma só. A sua indivisibilidade não aceita a possibilidade de partição consequente à ressuscitação. É exatamente ao contrário dos videojogos: o barco onde se joga a vida tem um código de conduta: apenas temos uma vida. Seja ela desperdiçada e não há remédio que acautele o arrependimento. Se se gastar e o fogo decair no nada, que a ninguém seja permitido o reacendimento da vela.
III
 Não ressuscitar”, tatuado algures, em monocórdico entoar, para chocar as consciências desadormecidas. Se temos medo da morte, por que não aceitar a hipótese da ressuscitação se ela tiver provimento, se a hipótese oferece caução a um prolongamento da vida, a um adiamento da morte? Responde o tatuado: para darmos o valor de que a vida é credora. Pois se não lhe conferirmos o valor que é seu, e inato, temos a errância como destino e, possivelmente, o desbaratamento da vida que veio às nossas mãos. Elevemo-la o máximo que pudermos. Não há segunda hipótese. Não é preciso haver segunda hipótese.
IV
Não ressuscitar”. À procura de lugar para ser tatuagem. Não se intui a mensagem, nem se anda à procura de destinatário. Há palavras, conjugações de palavras articuladas em orações, que não querem verdadeiramente dizer nada – ou, pelo menos, que lhes deve ser retirado o sentido literal que se sobrepõe à formulação. A escolha foi “não ressuscitar”, como podia ser “língua de cão”, o desenho de frutos pendidos, “Angola 1971”, “Black Sabbath”, ou, em caracteres árabes, o nome da quinta namorada a contar para trás desde o presente.
V
 Não ressuscitar”. De fonte segura. É o mais certo. Que se dane a morte maldita, a morte autenticamente madraça. Pois “mais vale fazer da vida um festim”.

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