Ryuichi Sakamoto, “ubi”, in https://www.youtube.com/watch?v=IG2zzxYMqDo
Sem as linhagens malsãs, sem armas
terçadas, sem ocasos aprontados como pretexto, sem o gongórico por estilo:
conta-me tudo. Na vertigem do mais saber, no amplexo de onde tiramos à sorte o
miradouro epistolar, no módico prazer do escutar tuas palavras. Conta-me tudo:
até o que possa parecer frívolo, que na doçura da tua voz se transfigura em protocolar
proclamação. Como se houvesse um púlpito à espera da tua subida e eu, único
espetador, aguardasse ansiosamente as palavras em tua declamação. Por saber que
no que me contares bebo a raiz quadrada da existência.
Conta-me tudo. O que houver sido adiado
e até o que esteja para ser lido no futuro. Pois se “somos tutores do tempo que vem às nossas mãos”, dele somos seus
mandantes e ao tempo sobra a obediência. Tiramos ao acaso, nas páginas de um
livro, uma frase – como se o olhar tivesse fotografado essa frase, ou como se
ela aparecesse sozinha a emoldurar a página: “Porém não há passado:/fora do tempo só existe a vida/uma luz imortal que
o tempo mata.” (Gastão Cruz, Existência,
Porto, Assírio & Alvim, 2017, p. 22)
Damos sequência à frase. Eu começo: “Temos de recusar a tirania do tempo. Como se
a existência só aparecesse moldada pelo tempo.” É a tua vez: “E temos de reconstruir as medidas por que
nos regemos. Desligar a existência de um modo que só é temporal, pois a existência
é intemporal.” Metemos a cabeça dentro de uma clepsidra; queremos matá-la. Para
o tempo não matar a luz imortal que se insinua, difusa e pouco nítida, quando
estamos submergidos. Continuo: “Amedronta-nos
a noite. A noite, uma falsa quimera incensada no gatilho do tempo.” Dás sequência:
“Se as medidas continuarem perenes,
teremos dia, entardecer, ocaso, noite, a prolongada noite, madrugada, alvorada,
manhã, dia outra vez. E não passam de convenções, improdutivas menções não
humanas, apenas um nexo determinado pelo impessoal tempo.” Sem esperar,
acrescento: “Somos ludibriados pela
fogueira acolhedora, onde depois somos despojados. É o maldito tempo que nos
atrai, faz frio lá fora e queremos o conforto da fogueira.” Não demora o
teu contributo: “Oxalá não fossemos
açambarcados pelos zénites que trazem submissão. Não aprendemos nada. Parece
que uma entidade superior inventou estas categorias para nos aprisionar por
dentro delas. O tempo, caução da existência. E a insignificância da existência,
enquanto existir deste modo.”
Deixamos o vazio tomar conta da
paisagem onde os nossos olhos se refletem. Dir-se-ia: deixamos o tempo correr –
ou deixamos o tempo a correr. Não é o caso. Entrincheirados no vazio lapidar,
onde o tempo não tem lugar, julgamos a existência pelo nosso, exclusivo, pêndulo.
E concluis, parafraseando outra vez o poeta: “A vida é apenas um pouco mais velha do que a morte. Sobreviverá pouco à
sua irmã mais nova. O que é a morte da morte? De que é feito esse breve momento
entre a morte da morte e a morte da vida?”
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